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quinta-feira, 19 de abril de 2018

Do colaborador Dr. António Bulcão


Os meninos do São João


Quando o meu pai morreu, fiquei para morrer também.
Era o meu melhor amigo, o companheiro de todas as horas. E eu à volta do caixão como o cão que perdeu o dono e espera um movimento, uma tosse, um assobio. E eu sentado nas traseiras da casa mortuária, a molhar os fundilhos das calças do meu melhor fato, sem me importar com a chuva que me encharcava sem remorsos.
A água que vinha de dentro era mais, não tinha pára-brisas nas pálpebras e pouco me importava em ver o fundo do buraco para onde me sentia deslizar. 
Voltei para dentro, uma amiga sentou-se ao meu lado e eu disse-lhe“ não imagino dor maior”. E ela respondeu-me: “Reza para não te morrer um filho”.
Suspendi por instantes as cataratas. Na altura só tinha um filho mas vinha outro a caminho, estava por meses.
Lembrei-me da genialidade de Chico Buarque nos seus “Pedaços”: “A saudade é um revés de um parto, a saudade é arrumar o quarto, do filho que já morreu”. Arrepiei-me. Deve ser mesmo a suprema saudade. 
Passados uns anos, já de regresso à Terceira, abracei um amigo que tinha perdido um filho. Disse-me: “Que diabo, morre um pai, um homem fica órfão. Morre uma esposa, um gajo fica viúvo. Morre um filho e nem sequer há nome para isso…”. Verdade, António.
Ver um filho a sofrer é uma dor que não tem território definido. Percorre todos os milímetros do corpo, não deixa dormir, nem descansar, os olhos vermelhos de choro e o cérebro fixo no mal que ataca quem pusemos aqui.
Quando essa dor vem de um cancro torna-se pior. Porque os tratamentos são terríveis, deixam marcas, levam cabelos, emagrecem, definham. E, ao fundo, o espectro da morte.
Deveriam bastar as rádio e quimioterapias, os internamentos, as dúvidas e incertezas sobre o futuro. Não era preciso somar a esse sofrimento ver um filho pele e osso partilhar os elevadores de um hospital com os caixotes de lixo. Nem ver os carros das limpezas colocados ao lado dos da comida. Os vómitos dos medicamentos já serão bastantes. Não era preciso somar mais uns quantos e ver o ente mais querido ser tratado num corredor.
Entre a visão de uma criança a sofrer, mas em condições de higiene, e a contenção do défice, não hesito. Que se lixem os critérios de convergência exigidos pela União Europeia.
E, já agora, resolvam isto antes de discutir a eutanásia, com a qual concordo desde que tenho consciência da minha finitude. Antes de acautelarem os direitos dos que querem morrer, pelo amor de Deus olhem para os direitos dos que querem (e merecem) viver.
António Bulcão
(publicado hoje, no Diário Insular)




Carlos Alberto Alves

Sobre o autor

Carlos Alberto Alves - Jornalista há mais de 50 anos com crónicas e reportagens na comunicação social desportiva e generalista. Redator do Portal Splish Splash e do site oficial da Confraria Cultural Brasil-Portugal. Colabora semanalmente no programa Rádio Face, da Rádio Ratel, dos Açores. Leia Mais sobre o autor...

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