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quinta-feira, 19 de abril de 2018

Do escritor Joel Neto


REGRESSO A CASA

Um diário açoriano

de JOEL NETO


Perdidos à rua!

Lugar dos Dois Caminhos, 12 de Abril
Há pouco a Ana Paula perguntou-me se eu já tinha conseguido reduzir os cigarros. Íamos talvez no quinto quilómetro, altura em que ainda consigo responder às perguntas que me façam, e recordei-lhe que aquilo a que me comprometera fora a parar de fumar, não a reduzir a frequência com que o fazia. Estava – lembrei-me da app – no nono dia sem tabaco. Senti o impulso de dizer aquilo que se diz sempre: “Realmente, era um vício bastante estúpido...” Mas travei-me a tempo.

Porque é que fumar há-de ser sempre um vício estúpido? Imagino que o seja muitas vezes. Imagino que o seja para toda a gente em algum momento. Mas seria sempre para toda a gente um vício estúpido? Não estou certo disso.
Pus-me a pensar no quanto devo aos cigarros. Fumei-os durante 25 anos, do primeiro semestre de faculdade até faz agora – volto à app – oito dias, 23 horas e 46 minutos. Fumei-os nos Açores, em Lisboa e no estrangeiro. Fumei-os sozinho e acompanhado, solteiro, casado, divorciado e casado de novo. Fumei-os em tardes de silêncio e em noites de farra. Fumei-os quando apanhei os maiores sustos da minha vida e fumei-os nos instantes de maior alívio também. Portanto, devo-lhes desde logo isso: estiveram sempre lá – marcando o tempo, dando-me conta da minha existência, fazendo-me sentir-me lá também.
Seria estúpido chamar estúpido a um vício assim, a não ser que todos os vícios sejam estúpidos. Suponho que o sejam. Mas, apesar disso, entre os vícios que tenho, fumar nunca foi o mais estúpido.
É claro: tirou-me fôlego. Submeteu-me a riscos de doenças oncológicas, de doenças cardíacas e de toda a sorte de doenças pulmonares. Levou-me uma fortuna, piorou-me o hálito, reduziu-me a aceitação social, fez-me queimar roupa e assentos do carro. Ainda agora deixei de fumar e já o diabo da app, no esforço de me dizer a quantidade de coisas que consegui nestes oito dias – batimentos cardíacos de volta ao normal, níveis de oxigénio repostos, monóxido de carbono e nicotina eliminados do organismo – me lembra de quanto tempo alguns dos malefícios que impus ao meu corpo levarão a erradicar-se. Por exemplo, só daqui a dez anos terei conseguido reduzir para metade o risco de cancro no pulmão.
Mas a verdade é que fumar me deu uma série de outras coisas. Por exemplo, ajudou-me a concentrar-me. Nestes 25 anos, fui estudante, jornalista, escritor: nunca tive melhor maneira de encontrar o início de um texto, de me distanciar dele e poder começar outro, até de sair dele e a ele voltar com outros olhos. E não só. Fumar ajudou à minha autoconfiança, por exemplo. Antes de entrevistar alguém importante, antes de dar uma entrevista a alguém importante, antes de abordar uma rapariga inacessível – fumar descontraiu-me, deu-me alguma coisa com que ocupar as mãos, chegou a oferecer-me a ilusão de que era capaz. Isto já para não falar nas noites de solidão. Em Lisboa, regressando sozinho do trabalho, de madrugada; algures no mundo, cheio de saudades de casa e de sentimentos de culpa; nos Açores, olhando o mar ou cavando na minha horta – fumei sempre.
Fumar foi o meu psicólogo e o meu guarda-costas, o meu amigo e o meu carcereiro. Acabei por me apaixonar pelo meu carcereiro, mas quem não se apaixona pelos seus? Sobretudo, não foi uma coisa estúpida: foi um negócio. Um negócio que fez sentido. Eu submetia-me aos riscos e aceitava os inconvenientes. Ele fazia a parte dele, e creio que a fazia bem. No ano passado, estive três meses sem fumar. Tinha voltado a fazer exercício físico e estava a gostar das possibilidades que não fumar me acrescentava. Não escrevi uma linha em condições. Voltei a fumar da maneira o mais consciente possível: para conseguir levar o livro novo até ao fim. Não sei se o teria conseguido sem fumar. Não dentro do prazo. Não este livro. Não bem escrito.
Foi um negócio, fez sentido e agora já não faz. Tenho sorte, porque ainda estou vivo. Tive amigos a quem o mesmo negócio conduziu à morte eram eles mais jovens do que eu sou. E acredito que todos, podendo voltar atrás, tivessem sentido o impulso de não fumar. Mas julgariam eles também, em plena consciência – essa de que um moribundo já foi desprovido –, que fumar tinha sido sempre estúpido? Não me parece.
Creio que era Mark Twain quem dizia: “Deixar de fumar é a coisa mais fácil. Eu próprio já deixei mais de 50 vezes.” Imagino que quem leia este texto se apresse a vaticinar: “Este não se aguenta até ao São João...” E talvez, ao escrever isto, eu esteja de facto a viver a minha nostalgia, tal como as raparigas terminam uma sessão de ginástica e se põem a falar da comida que deixaram de comer. Faz-me lembrar aquele monólogo do Jim Jarmusch no Smoke, a pretexto do seu último cigarro: “Sexo e cigarros. Ora aí estão duas coisas de que vou ter saudades.” Ou aquele do Lou Reed: “Vê isto pelo lado positivo: enquanto estou a fumar cigarros, não estou a emborcar uma garrafa de uísque em quinze minutos. Acaba por ser um hábito saudável.”
Não, saudável não é. Não aconselho ninguém a começar. Mas também não é necessariamente estúpido. E, de qualquer maneira, revestir de virtudes profiláticas – ou, pior, moralistas – a decisão de parar jamais me ajudaria a vencer o vício. Mais depressa voltava a fumar.
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* alguns destes textos são originalmente publicados no “Diário de Notícias”
Carlos Alberto Alves

Sobre o autor

Carlos Alberto Alves - Jornalista há mais de 50 anos com crónicas e reportagens na comunicação social desportiva e generalista. Redator do Portal Splish Splash e do site oficial da Confraria Cultural Brasil-Portugal. Colabora semanalmente no programa Rádio Face, da Rádio Ratel, dos Açores. Leia Mais sobre o autor...

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