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485º Aniversário da Cidade de Angra do Heroísmo

sexta-feira, 20 de abril de 2018

Do escritor picoense Urbano Bettencourt


Ser ilhéu – e salvar-se pelos livros - URBANO BETTENCOURT

©  Onésimo T.Almeida

Nesse tempo, levantávamo-nos às quatro da manhã, para subirmos do Calhau até ao Curral da Pedra, o centro da freguesia. A camioneta arrancava às cinco horas (ainda não havia autocarro, que a escolaridade e a comunicação social haviam de fazer chegar lentamente ao vocabulário do quotidiano, ao mesmo tempo que relegavam uma parte dele para esse escaninho das velharias a que os especialistas gostam de chamar arcaísmos). Às nove horas, depois de quarenta quilómetros de ilha e mais nove de Canal, desembarcávamos, finalmente, na Horta, a cidade em frente.

Esse tempo era o de meados da década de cinquenta no Pico. E a duração da viagem entre a Piedade, no extremo leste da ilha, e o Faial, costumo usá-la como medida de referência: cinco horas dão hoje para chegarmos de Ponta Delgada a Boston. Bem sei: tudo é relativo neste nosso mundo e, na altura, seria outro o tempo necessário para cobrir a distância entre as ilhas e o continente a oeste; mesmo assim, na sua dimensão relativamente imperfeita, essa medida serve para mostrar como os Açores de hoje já não são os dessa década, simultaneamente próxima e remota: afastada já na folha dos calendários e no rol das suas dramáticas condições de vida, ela continua presente e íntima no modo como aprendemos a apreender o mundo e a situar-nos nele.
Se eu quiser recuperar dessa época alguns traços que ajudem a traduzir, agora, uma compreensão da vida e da (minha) existência insular, aquilo que de imediato me ocorre é a noção de escassez (e esta poderá ser também uma forma encapotada ou eufemística de nomear a penúria de bens materiais, a sua redução àqueles mínimos que asseguravam uma vida gizada à custa de expedientes quase diários, fruto de um engenho aguçado pela necessidade, como a sabedoria popular se aprestava a esclarecer). Na verdade, a consciência da escassez começava talvez por ser a de território sólido em que assentássemos os pés, sempre ameaçados pela presença do mar e pelas suas inesperadas e incontroláveis variações de humor: tudo era pequeno, a começar pelo espaço e pelas terras que nos tinham saído em sorte (ou azar), mas isso não impedia que cada deslocação de um sítio a outro da ilha fosse vivida com um sentimento misto de excitação e lonjura, mesmo àqueles que, como a Calheta, ficavam perto da Piedade. Tudo era pequeno e tudo era distante, para abreviar. É certo que, na costa norte do Pico, tínhamos em frente a ilha de S. Jorge, uma espécie de sentinela permanente, com as suas escarpas misteriosas, com as suas gentes e vidas mais adivinhadas do que conhecidas; mas isso não anulava de todo o sentimento de que a proximidade era, nesse caso, inseparável da condição de afastamento e distância.
E no entanto… talvez tenha sido isso que me levou a indagar aquilo que se escondia para lá do espaço circunscrito das ilhas, a interpretar os sinais que desses mundos nos chegavam: um deles foi um colete axadrezado e em tons de azul, chegado da América, como se fora feito para mim, e sobre o qual suponho ter exercido a minha primeira análise estética, aos cinco anos de idade. Nesse tempo, isto (também) era ser ilhéu. Mas os livros e a palavra impressa foram simultaneamente os grandes sinais do mundo e o veículo que me conduziu a outros, de variadas configurações, entre o real e o efabulado.
Na família não havia a Odisseia, nem Os Lusíadas ou a Guerra e Paz nem sequer a Bíblia, aqueles livros que constroem o futuro leitor de longo curso. Havia, isso sim, uns livros miúdos que nunca soube de onde vinham, narrativas populares em folhetos de edição barata, a história de Pedro Sem (Que Teve e Já Não Tem), a história de João de Calais (que só mais tarde eu soube que não devia ler-se como uma forma do verbo calar).
E havia também pequenas brochuras impressas na costa leste dos Estados Unidos, a Rosa do Adro, em quadras que desfiavam uma história de enganos e desenganos, na cantilena do seu ritmo e da sua rima. E havia ainda uma novela açoriana do princípio do século, O Oiro da Califórnia, que dividia os homens em bons e maus: um deles perdia-se no álcool e na solidão da ilha das Flores, no entanto um irmão chegava da Califórnia para repor a ordem familiar e a do mundo também.
Mas o grande livro da minha infância (depois de começar a juntar letras) e da primeira adolescência foi outro.
Na loja do senhor Luís Sapateiro vendia-se quase tudo o que era essencial para uma comunidade de consumos frugais e que, não raro, sobrevivia ainda em regime de troca direta: açúcar, farinha, tecidos, petróleo, sal, botões, cadernos, lápis para ardósias (as pedras xurdeirentas, que obrigavam a, pelo menos, uma ação de higiene semanal). À esquerda de quem entrava, um estreito armário de canto, envidraçado, guardava objetos de que perdi o nome e a memória, pois era também aí que se encontrava um romance em tudo estranho e longínquo: o título, John chauffeur russo, e o autor: Max du Veuzit. Tudo nele me atraiu e despertou a curiosidade, a diversidade da composição gráfica sobre a capa azul, o mistério de uma palavra escrita que nada parecia ter em comum com aquele «chofer» que nos guiava pelas estradas tortuosas da ilha em camionetas barulhentas e ronceiras; e eu estava ainda longe de saber que um nome outro se escondia por trás desse disfarce autoral. Nunca tive a coragem de pedir ao senhor Luís que me deixasse ao menos folhear o romance, e o dinheiro desse tempo não dava para comprar livros. Depois, era já demasiado tarde para correr o risco de um desencanto. E nunca li o romance de Max du Veuzit. Na sua não-leitura, ele acabou, mesmo assim, por integrar o conjunto daqueles pequenos textos que me ensinaram a ultrapassar o óbvio e o imediato e a embrenhar-me na realidade outra que a imaginação nos avança e, através da qual, nos dá a ver a complexidade das relações, das interações com que se escreve a realidade primeira que, por vezes, julgamos tão linear.
O tempo trouxe-me a possibilidade de viajar regularmente entre as ilhas, de pisar o seu chão e aos poucos conhecer as suas gentes; mais tarde, o arquipélago ficou para trás e novos espaços se abriram ao meu olhar e à minha experiência, nem sempre em circunstâncias que tenham deixado à memória razões para sentir-se bem com os seus arquivos mais secretos. Em todo esse tempo, no entanto, o conhecimento do mundo e do outro e a descoberta da diferença e do estranho foram sendo construídos a partir da observação direta e da leitura, a partir do real concreto e das palavras que o dizem. Simultaneamente, a imagem de ilha foi-se revelando aquela que melhor definia a minha perceção do mundo, era o modo que eu tinha de construir e situar-me num espaço erguido à medida humana da nossa mão. Ainda antes de E. F. Schumacher o ter escrito, eu já descobrira que, embora noutra perspetiva, small is beautiful e espero não escandalizar ninguém se disser que, em pleno tempo de guerra, me senti bastante confortável nesse mês e meio que passei na ilha de Bolama, próxima do litoral da Guiné-Bissau, embora não suficientemente distante para evitar os mísseis dos nossos inimigos. E mesmo agora sei que é sempre a partir da construção imaginária de uma ilha em volta que me movimento e me sinto livre e solto nas cidades que me acolhem e que elegi como minhas.
Depois de catorze anos de andanças e errâncias, regressei aos Açores. As circunstâncias fizeram-me regressar, será, por certo, o modo mais correto de dizer as coisas – mas o tempo tem o dom de esculpir e dar novos contornos à matéria outrora informe, aparando as suas linhas dissonantes. Agora, o avião pode transportar-me para fora do arquipélago e trazer-me de novo a casa em menos tempo do que aquele que, ainda no início dos anos setenta, eu gastava para viajar de Lisboa ao Pico ou vice-versa. A net faz-me chegar rapidamente os livros e os CD que, através dela própria, vou descobrindo. Sento-me diante do computador, ligo o skype e falo com as minhas filhas no retângulo português ou com os meus sobrinhos nos confins do Brasil. Os meus amigos estão por aqui e por ali, em muitos lados, e já não dependemos da lentidão dos correios para trocarmos ideias e traçarmos projetos.
Os cosmopolitas esforçados dirão que acabaram as distâncias e a experiência física do tempo suspenso. A verdade, porém, é que o mar continua ali, como o dinossauro de Augusto Monterroso, e esta ilha que também se tornou minha não vai além dos seus setecentos e cinquenta quilómetros quadrados mal medidos, e é a maior. Algumas, menos povoadas e mais pequenas, provocam-me uma sensação de espaço imenso e íntimo como só pude experimentar em África; no limite da redução territorial, outras deixam-me uma desolação interior, uma mágoa anónima que nenhumas palavras descreverão, e o desejo nada absurdo de fugir, mesmo para outras ilhas, desde que afastadas do nosso universo próximo, demasiado próximo, por vezes.
Daquelas por onde passo, tento sempre aprofundar o conhecimento das suas gentes e da sua realidade física e guardar comigo os sinais mais fidedignos de culturas que atestam, em concreto, experiências do diverso, também por nelas se cruzarem o mesmo e o outro, o interior e o exterior, em resultado de serem, as ilhas, placas giratórias ou encruzilhadas, para socorrer-me do termo de Carl Sagan. Mesmo que isso implique aproveitar uma folga num Curso de Verão em Tenerife e meter-me numa camioneta, agora chamada guagua, e fazer os oitenta quilómetros entre Adeje e La Laguna para «visitar» a Librería Lemus e nela me perder.
E assim me entendo como ilhéu: um homem sobre um rochedo, rodeado de mundos, imaginados, concretos, por todos os lados. E sem sentir que deva pedir desculpa por isso, seja a quem for.


Carlos Alberto Alves

Sobre o autor

Carlos Alberto Alves - Jornalista há mais de 50 anos com crónicas e reportagens na comunicação social desportiva e generalista. Redator do Portal Splish Splash e do site oficial da Confraria Cultural Brasil-Portugal. Colabora semanalmente no programa Rádio Face, da Rádio Ratel, dos Açores. Leia Mais sobre o autor...

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