Romance de Adelaide Freitas
SORRISO
POR DENTRO DA NOITE
A menina diluída na ilha que viveu fora de sua mãe Primeiro
romance de Adelaide Freitas às voltas com uma menina negligenciada. por
Ana Marques Gastão O que sustém o sujeito na sua ficção de unidade é
uma "existência aflita". Dir-se-ia o caso de Xana, menina-ilha em
ruína diluída, afirmando-se contra o caos primordial, personagem central de
Sorriso por Dentro da Noite - romance inicial da escritora açoriana Adelaide
Freitas. Às voltas com uma mãe-
-de-fotografia, a personagem revela-se uma
figura suspensa num enredo que se vê lugar de intersecção entre presente e
futuro, o primeiro configurado na ausência, o segundo na projecção de um tempo
vazio, porque amputado da maternidade. Em Sorriso por Dentro da Noite, o
presente não é um lugar fixo, mas momento de enunciação do discurso, o do
(des)encontro com o Outro e reconciliação consigo traduzido numa intensificação
de sentimento. O passado, esse, surge como necessariamente imperfeito,
confinado à ideia de incompletude de uma criança-rio, intensa e fragilizada, a
do "cheiro nauseabundo de órfãos sem rosto." Xana tem mãe, mas não a
tem porque partiu para a América em busca de melhor vida, deixando-a,
numa"solidão fusca e gelada", com a avó protectora. A história pode
dizer-se comum para um escritor ilhéu, cujas temáticas têm sido, por vezes, ao
longo do tempo, fechadas dentro de limites geográficos, centrando-se na
emigração. E nem sempre o romance português ousou ultrapassar o localismo. Mas
Adelaide Freitas ultrapassa o lugar-comum no todo homogéneo que constitui o seu
livro, significativo, é certo, na sua insularidade, mas aberto a uma
curiosidade existencial a que não são estranhos os elementos temperamentais da
respectiva latitude. Xana é um Eu à procura de si num mundo que não tem por
medida esse mesmo Eu. Sendo uma narrativa convencional, o leitor desprevenido
deste livro poderá deparar com uma viagem interior de uma criança que se
interroga Quem, sem mim, me levou? Que levada foi essa que antecedeu a
construção da minha personalidade? E é ela que, de modo certeiro, faz a
marcação de Sorriso por Dentro da Noite, amplificando a intensidade dramática
dos acontecimentos, introduzindo a variedade rítmica que sustenta os seus
momentos mais significativos, como no episódio emblemático da obra - a chegada
da menstruação, sangue associado inteligentemente pela autora à perda, no
momento do regresso da mãe da América, e não ao nascimento e à renovação da
vida "(...) Ao ver a nossa mãe a sair de entre a multidão para começar a
descer as escadas, ainda longe, afastou-se, imaginando que a mamã seria muito
doce, e até fantasiou que sendo ela mais alta e volumosa do que a vovó, talvez
pudesse resgatar os buracos desguarnecidos do seu corpo; talvez pudesse pedir a
mamã para lhe tirar as dores e matar o mênstruo, para sempre." Aqui o Eu
diz-se feminino e constitui-se, ao reunir os fragmentos dispersos de uma
biografia individual, pela potência fecundante de um sentimento que se
experimenta perante a dor de uma menina negligenciada. Adelaide Freitas escreve
- não obstante alguma incontenção metafórica própria de um primeiro livro -,
sabendo que a história do género romanesco está ligada à consciência
linguística. O romance nasce então de uma atitude nova e crítica perante a
linguagem a partir do momento em que, como sublinha Bakhtine, ela deixa de ser
pura e simplesmente vivida de dentro, por dentro, como absoluto, para passar a
ser vivida de modo distanciado, relativizado. Na força expressiva do seu verbo,
na fluidez da frase, na discreta modulação do ritmo, na clareza da narrativa
conseguida sem grande artifício, no esboçar das personagens, umas
psicologicamente mais densas, outras menos, Adelaide Freitas dá-nos um romance
que, na ductilidade que oferece, conta uma história de sangue e ternura no
movimento e vida interiores. Mesmo a paisagem, o horizonte visual das coisas,
que reconduz o leitor ao mundo concreto, surge como transferência metafórica no
recorte da figura de Xana, a menina que viveu de fora, ilha agitando-se nas
vagas.
Sem comentários:
Enviar um comentário