À PESCA DE “SUBMARINOS”
A Pastelaria “Lusa”, ali a meio da Rua Direita, em
Angra, era lugar predileto de reunião de doutores, figuras altas da sociedade
angrense e até de caixeiros viajantes e delegados de propaganda médica
continentais.
Estabelecimento sossegado, limpo, com a sala de
entrada ocupada por várias mesas e cadeiras, prateleiras recheadas de bebidas,
caixas de bombons, pacotes de bolachas finas e outros artigos para oferta. Ao
fundo, um balcão dividido em duas metades, dando passagem para a sala interior,
mais reservada e preferida pelos que não gostavam de estar expostos aos olhares
de quem passava na rua. Em cima do balcão do lado direito, uma enorme máquina
de cortar fiambre que me deixava embasbacado com a ligeireza e a finura das
camadinhas da carne. Do lado esquerdo, a “caixa dos furos”, em forma de
estrela, para sortear chocolates Regina. Coisas
que punham os olhos em bico ao menino que não tinha dinheiro para comprar
aquelas iguarias. Era só cheirar...
O proprietário da Pastelaria, o Sr. Manuel, era pessoa
reconhecida pelo seu delicado porte e boas maneiras. Educado, não prestava
atenção às conversas dos seus estimados clientes e, se por acaso ouvia alguma
confidencia, que não se preocupasse o desprecavido comensal, os ouvidos do Sr.
Manuel eram convenientemente moucos. Era uma das regras de quem se orgulhava de
ser um” bom balcão”.
O empregado de confiança da casa, o Costa – tinha o
mesmo último nome mas não pertencia à família do dono - merecia também o
respeito dos clientes. Não era para menos, o Costa subalterno era uma santa
pessoa. Magrizela, com uma trunfa de cabelo quedado que fazia parecer que tinha
uma cabeça enorme de mais para o corpo, arrastava-se penosamente de uma sala
para a outra, “O raio destes cais nos pés
tiram-me anos de vida”, dizia. Era ligeiro no entender dos sinais dos clientes,
principalmente os que se juntavam na sala interior a ler os jornais do dia ou a
discutir tauromaquia e futebol. Ele já sabia, um movimento de cabeça ou um dedo
indicador levantado e o Costa lá ia encher as chávenas, não de café ou de chá
mas de bom vinho tinto do Continente. Havia que manter as aparências.
O “Patusco” era um dos clientes mais assíduos. Falava
pelos cotovelos. Então se encontrava na “Lusa” o seu conterrâneo Rui do Valle,
era certo e sabido que a discussão ia ser calorosa. Mas, para se meter com o
Costa, não havia outro melhor. O desgraçado do empregado de mesa inquietava-se
com o “Patusco”. No princípio, era o sotaque continental que o deixava
desnorteado; depois era o problema da pesca. O Costa tinha por hábito guardar
as sobras de queijo de peso ou de queijo de bola para usar como isca quando ia
pescar aos sargos. E era esse vício que levava o “Patusco” aos arames... “Ó pá,
ó Costa, pá, não me digas, pá, que vais outra vez pescar, pá, ali para junto do
esgoto do Cais da Cidade, pá! Aquilo é um nojo, pá. É cada submarino
que aparece ali a boiar. Tem juízo, pá!”
O Costa desculpava-se que eram os sargos mais
saborosos, os que se apanhavam no Cais da Cidade. E que não pescava junto do
esgoto, era assim um bocadinho mais ao lado, como que a tentar convencer o
adversário. Que, até se ele quisesse, trazia-lhe uns já fritinhos, para provar.
“Patusco” resolveu dar uma lição ao Costa. Numa tarde
de sábado a ocasião proporcionou-se. Rui do Valle, que também era pescador
amador, ao chegar à “Lusa”, deu-lhe a notícia, “Nosso Costa já tem um cesto
cheio de sargos bem grados”. “Patusco” não perdeu tempo, bota-se Rua Direita
abaixo, em direção ao Pátio da Alfândega. O Costa, ali a meio do Cais, mal o
viu, ficou apreensivo. Ainda disse ao filho que o acompanhava, “Desvia-te mais
pró lado, se este toleirão me chatear, dou-lhe com o caniço nas orelhas”.
“Patusco” tentou disfarçar a questão. Indagou da
quantidade e da qualidade do pescado, teceu elogios ao estado do tempo e à
perícia do pescador. Mas, sorrateiro, quando apanhou o Costa a jeito, deu-lhe
tamanho empurrão que atirou o Costa ao mar, ao mesmo tempo que lhe dizia, “ Vê
lá se as águas estão limpas! E não abras a boca, para não ficares com algum submarino atravessado na garganta”. E pernas para que
te quero, safou-se dali para fora. Valeu ao Costa a presença no Cais do Augusto
“Saca” e de outros dois rapazes que o ajudaram a sair da água e subir as
escaleiras. Alagado pingando, foi um martírio para chegar a casa, os calos do
pés a protestarem com os sapatos, mais pesados que as chumbadas da pescaria. O
filho, atrás dele com o cesto dos sargos, continha uma lágrima teimosa. “Devias
ter atirado o peixe ao mar”, disse o pai, zangado.
No dia seguinte, ao chegar à “Lusa”, o patrão, Sr.
Manuel, estava à espera dele com um grande embrulho nos braços. “É para ti, o
Sr. António “Patusco” disse para te dar”.
O Costa ficou de boca aberta... um fato, do bom e do
melhor, novinho em folha, completo com camisa, gravata, meias, um par de
sapatos de verniz e até um cinto! Ficaram as pazes feitas.
O único senão é que o Costa nunca convenceu o
“Patusco” a provar sargos fritos.
Lincoln, Ca. Julho, 8, 2016
João Bendito
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