A EXCEÇÃO
“Já leu o Cony, hoje?” A frase, dita
num tom conspiratório, se repetia cada vez que saía um dos artigos do Carlos
Heitor Cony no Correio da Manhã. Funcionava como uma espécie de senha. Era o
preâmbulo para a nossa admiração pelo único jornalista da grande imprensa
brasileira que se manifestara contra o golpe de 1964 desde o primeiro minuto, e
para a nossa troca de entusiasmos pelos seus textos. O tom conspiratório se
explicava porque ler e se entusiasmar com o que Cony
escrevia, em meio ao atordoamento geral, equivalia a um ato de resistência.
O fato de ser único dava a Cony e sua rebeldia outro significado. Até
começar a sofrer as represálias do regime - ameaças e eventualmente prisões -
Cony se valeu de um resto de liberdade permitida para escrever o que queria, a
mesma liberdade disponível para outros jornalistas, que preferiram não usá-la,
ou por medo ou por coerência, porque tinham apoiado o golpe. Quando o regime
fechou de vez e veio a censura ostensiva da imprensa o Cony não pôde mais ser nosso
respiradouro, como o descreveu alguém, na época, e foi trabalhar para os
Blochs. Mas ninguém pode lhe tirar a glória de ter sido, por um breve e
luminoso momento, a exceção.
Outros
se manifestaram esporadicamente contra a golpe, enquanto foi possível. Me
lembro principalmente do Antonio Callado escrevendo - se a memória não me
falha, o que eu duvido - no Jornal do Brasil. Mas ninguém ridicularizou e
desautorizou o regime com a mesma persistência e pontaria do Cony. Que nunca
foi ideológico, apenas compartilhou conosco sua intransigência com o poder
usurpado, e disse tudo que a gente queria dizer. Enquanto foi possível.
Os
nostálgicos da ditadura construíram um passado que nunca existiu, em que o País
esteve em ordem, com progresso milagroso e sem corrupção, e generais se
sucediam na Presidência numa grotesca pantomima de democracia. A verdade estava
nos porões da repressão onde tantos desapareceram e tantos foram torturados,
sem que a imprensa controlada pudesse revelar a barbárie, depois que fecharam o
respiradouro. Mas pelo breve e luminoso momento, obrigado Cony.
Sem comentários:
Enviar um comentário