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quarta-feira, 28 de fevereiro de 2018

Os "Monstros Sagrados" jamais serão esquecidos - Vitorino Nemésio


Ficção: O Romance de Todos Os Romances 

Por FÁTIMA FREITAS MORNA*

19 de Dezembro de 2001

"Mau Tempo no Canal" é a resposta à herança de Eça, é "O Meu Romance", necessário e absoluto
Em 1944, "Mau Tempo no Canal" deu a Vitorino Nemésio a ambicionada consagração como romancista: abundante e favorável atenção da crítica, o grande prémio literário da altura (Prémio Ricardo Malheiros, da Academia das Ciências) e um acolhimento comercial que sucessivas reedições viriam a confirmar ao longo dos anos.

Contudo, a mais conhecida obra de Nemésio é o foco de um mal estar que no diário reaparece com frequência: "o medo de morrer autor de romance único". Poeta impresso em livro desde 1916 ("Canto Matinal"), será como poeta que Nemésio se despedirá dos prelos 60 anos depois ("Sapateia Açoriana", 1976), deixando ainda nos últimos diaas de vida, em 1978, dois poemas nas páginas de uma revista.
Em tão amplo período de quase constante produção poética, a ficção narrativa aparece isolada em cinco títulos publicados entre as décadas de 20 e de 40, entre os contos de "Paço do Milhafre" (1924) e os de "O Mistério do Paço do Milhafre" (1949), sendo eles, em parte, os mesmos, com revisões, acrescentos e supressões. No meio fica outro romance, "Varanda de Pilatos" (1927), de que o autor pede a Casais Monteiro que "pelo amor de Deus não me fale nesse monstrozinho", carta de 24-11-1935), ao mesmo tempo que lhe envia as três novelas que serão publicadas sob o título de uma delas, "A Casa Fechada" (1937). Ora, em pleno período de intensa aprendizagem em tantos domínios, vivendo em França e depois na Bélgica, enquanto preparava o concurso que lhe daria um posto de trabalho em Portugal, publicava a sua "Poesia Moderna" (La Voyelle Promise", 1935, "O Bicho Harmonioso", 1938), e fundava a sua alternativa à "Presença" ("Revista de Portugal", 1937-40), ia Nemésio tentando fabrticar em si um ficcionista à altura da sua geração, imaginando, na carta citada, "as pragas de um futuro Nemésio agarrado ao seu Régio, Casais, Outros, e o Modernismo Português", para reconstituir à posteriori o sentido desse momento fundamental na literatura portuguesa. E nesse panorama futuro teria forçosamente que entrar um grande romance que, mais do que garantir um lugar pleno ao seu autor (sendo então, como hoje, a narrativa uma espécie de sinédoque da literatura efectivamente lida pelo público em geral), demonstrasse a vitalidade de uma tradição que parecia orfã desde que Eça de Queirós se fora, em 1900, deixando a descendência minada por um paradigma insuperável. "Mau Tempo no Canal" é a resposta a esse desafio, é "O Meu Romance", necessário e absoluto, entrevisto no diário (18-02-1936) sob um título abandonado, mas elucidativo: "Longitude Oeste". E é, nesse sentido, uma aposta ganha: metendo nele um pouco de todas as modalidades narrativas, como Eça fizera em "A Ilustre Casa de Ramires", Nemésio provou a si mesmo a ambicionada capacidade para gerir as grandes massas narrativas que no século XIX tinham fixado o horizonte do romance moderno (que era o seu) e que era capaz de o fazer actualizando-o com os contributos maiores da renovação novecentista nesse domínio, entre os quais o "parentesco" descoberto em Virginia Woolf terá sido determinante. Se o diário (11-06-1962) regista com prazer a classificação de "romance camiliano" que Óscar Lopes, excelente leitor da sua obra, atribuíra a "Mau Tempo no Canal", isso não significa que a novela passional de raiz romântica o esgote, mas apenas que também ela lá está, como lá estão as marcas dos núcleos estruturantes de tantas histórias contadas nos últimos dois séculos, desde a novela histórica à saga familiar e ao romance de aprendizagem. De certo modo, Nemésio escreveu nele todos os romances possíveis, talvez por isso adiou até ao fim a conclusão das múltiplas tentativas de um novo romance que deixou esboçadas.
Mas não será o ensaio nemesiano uma outra espécie de narrativa, a de alguém que vai tentando contar a história de um tempo, de um momento do mundo, através da leitura do que outros escreveram? Nesta perspectiva, torna-se revelador o facto de, no espólio, a maior parte dos textos de crítica e de ensaio se agrupar em pastas com a indicação de "vultos", "figuras", ou "perfis". É que mesmo num estudo de fôlego como "O Campo de São Paulo" (1954), mal se esconde o narrador de gentes, tempos e lugares por detrás do compilador e intérprete da documentação. É o que acontece na enorme massa de textos sobre Herculano que, desde a tese de 1934, se prolongam até ao fragmento dela editado em 1977 ("Retrato de Herculano"), talvez porque no romântico recriado ao longo da vida por Nemésio estivesse o protagonista de uma história emocionante, para lá da própria ficão: a história de um século inteiro, o século XIX, e do que o seguinte faria do seu legado. É essa história, fragmentária e intermitente, que a maior parte do ensaio de Nemésio lê nos poetas e escritores de que se ocupou.
*Investigadora da obra de Nemésio, comissária da exposição "A Rotação da Memória", patente na Biblioteca Nacional


Carlos Alberto Alves

Sobre o autor

Carlos Alberto Alves - Jornalista há mais de 50 anos com crónicas e reportagens na comunicação social desportiva e generalista. Redator do Portal Splish Splash e do site oficial da Confraria Cultural Brasil-Portugal. Colabora semanalmente no programa Rádio Face, da Rádio Ratel, dos Açores. Leia Mais sobre o autor...

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