PEIXE
O “politicamente correto” tem seus exageros, como chamar baixinho de
“verticalmente prejudicado”. Mas no fundo vem de uma louvável preocupação em
não ofender os diferentes: é muito mais gentil chamar estrabismo de
“idiossincrasia ótica” do que de vesguice.
O linguajar brasileiro está cheio de expressões racistas e
preconceituosas que precisam de uma correção, e até as várias denominações para
bêbado (pinguço, bebum, pé de cana) poderiam ser substituídas por algo como “contumaz etílico” para lhe
poupar os sentimentos.
O humor popular brasileiro,
principalmente, abusa do politicamente incorreto, sem se dar conta. Basta ver
os programas humorísticos de TV em que os tipos são, invariavelmente,
estereótipos, consagrados desde os tempos do circo e do teatro de revista.
Neles, o homossexual é sempre uma caricatura grotesca, o negro é sempre pouco
inteligente, o judeu é sempre o usurário da prestação, a mulher – quando não é
também grotesca – é uma gostosa simplória.
O tratamento verbal dado aos negros é o melhor
exemplo da condescendência que passa por tolerância racial no Brasil. Termos
como “crioulo”, “negão”, etc. são até considerados carinhosos, do tipo de
carinho que se dá a inferiores, e felizmente cada vez menos ouvidos. “Negro”
também não é mais correto. Foi substituído por “afrodescendente”, por
influência dos “afro-americans”, num caso de colonialismo cultural positivo (em
contraste com a ridícula substituição de “entrega” por “delivery”).
Está certo. Enquanto o racismo que não quer dizer
seu nome continua no Brasil, uma integração real pode começar pela linguagem. E
poderia vir mais rapidamente se as outras etnias adotassem autodenominações
parecidas. Eu só teria dificuldade em definir minha ascendência com alguma
concisão. Luso-ítalo-germânico (e provavelmente afro)-descendente? Como boa
parte dos brasileiros, não sou de uma linha, sou de um emaranhado.
Quando eu era garoto, nós tínhamos uma empregada
afrodescendente chamada Araci. Viveu conosco durante anos e nos divertia com
histórias de um namorado apelidado de Bagdá, porque um dia tinha se
entusiasmado com um filme das mil e uma noites. A Araci usava um nome
apropriado para nós, de carne branca: peixe.
Lembro da Araci me tirando da cama para ir à escola
com a frase “Levanta, peixe!”. E completando: “A coisa que eu tenho mais nojo é
ver peixe na cama”. Se fosse hoje, eu poderia protestar: “Peixe, não.
Aquadescendente”. Ela provavelmente viraria a cama.
Não sei por onde anda a Araci. Talvez o Bagdá a
tenha levado para o deserto.
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