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sexta-feira, 2 de março de 2018

Os "Monstros Sagrados" jamais serão esquecidos


O Modelo Televisivo do "Bom Observador" 

Por MÁRIO MESQUITA

19 de Dezembro de 2001

Nemésio foi o nosso maior cronista televisivo. Provavelmente, o último, porque, entretanto, o género quase desapareceu.
"Se bem me lembro...", de Vitorino Nemésio, e "Conversas em Família", de Marcelo Caetano, eram duas cátedras, com auditório nacional, que contribuíram para mudar a comunicação televisiva que, na fase salazarista, ainda se encontrava modelada pela herança radiofónica: o orador a ler o discurso com a cabeça enfiada no texto, semi-encoberto por uma floresta de microfones.

A semelhança entre os dois programas residia, antes de mais, no "formato": um cadeirão, o espectador encarado de frente, como destinatário da conversa, a ausência de mediação por qualquer jornalista em "estúdio". Ao tempo de Salazar, predominava ainda o modelo da "comunicação" dirigida às multidões presenciais. O orador dirigia-se a manifestações de apoio à guerra colonial no Terreiro do Paço ou aos "deputados", nas sessões da Assembleia Nacional. As "Conversas em Família" ou o "Se bem me lembro" visavam o invisível auditório televisivo, cada um dos telespectadores em sua casa.
Ainda no campo das semelhanças, Caetano e Nemésio eram professores. Falavam "ex-catedra". Figuras relevantes da Universidade Portuguesa, pilar fundamental do regime do Estado Novo, transportavam para a televisão o modelo do discurso pedagógico. "Conversavam" com a nação, como o professor ensinava aos alunos.
Marcelo introduzia na comunicação política, no final dos anos 60, uma preocupação argumentativa inovadora no quadro do regime autoritário, que correspondia a concepções já expostas na conferência "A Opinião Pública no Estado Moderno" (in "Ensaios Pouco Políticos", Lisboa, Verbo, s.d., p.75-124), proferida em 1965, quando se encontrava afastado do poder. Não se contentava em afirmar, fazia questão de explicar. Explanava e rebatia, em questões controversas, como as da guerra colonial, os argumentos de um interlocutor imaginário. Situava-se num lugar de autoridade política e pedagógica.
As diferenças entre os dois programas não eram menos relevantes do que as semelhanças. Marcelo transpunha o estilo próprio de uma aula de ciência política, transferida da Faculdade de Direito, a principal escola de quadros do regime. Assumia o papel de primeiro-ministro, político, líder do partido único. Vitorino Nemésio actuava à imagem e semelhança das suas aulas da Faculdade de Letras, que deixaram marca em sucessivas gerações de alunos, pela criatividade e erudição, mas também pelo estilo conversado, ameno, algo dispersivo, de alguém que sabia conjugar o prazer do convívio e a difusão do saber. O programa de Marcelo obedecia a um propósito de persuasão, o de Nemésio era um lugar de cultura e obedecia ao modelo da "charla", à maneira e semelhança da crónica escrita ("Jornal do Observador") e radiofónica ("Ondas Médias") em que mostrava ser mestre.
Esta aproximação não visa estabelecer afinidades político-ideológicas entre o jurista, doutrinário e sucessor de Salazar e o autor de "Mau Tempo no Canal" (sobre a atitude do escritor perante o Estado Novo leia-se o artigo de António Valdemar, "Nemésio Político, Antes e Depois do 25 de Abril", in Nova Atlântida, Angra do Heroísmo, Instituto Açoriano de Cultura, Vol. XLIV, 1998-1999). Pretende-se apenas sugerir que se inseriam num mesmo dispositivo de comunicação em que a televisão adoptava, com algum sucesso, o formato da "conferência", género em decadência na sua modalidade presencial, que conhecera a sua época áurea quando o prestígio das personalidades públicas ainda se "fabricava" entre os pares, em universidades, academias ou salões, longe das técnicas de difusão massiva que começavam a impor-se.
Se quiséssemos estabelecer uma equivalência entre géneros jornalísticos e os programas de Caetano e Nemésio, diríamos que as comunicações do primeiro-ministro obedeciam à lógica de um editorial desenvolvido, argumentativo, político, e as do escritor se inseriam no modelo da crónica, em que a erudição se disfarçava nas entrelinhas de uma conversa descontraída em que a rica gestualidade do professor jogava com o "pathos" do auditório. Nas crónicas televisivas, radiofónicas e jornalísticas de Nemésio, a temática obedecia à diversidade característica da diarística e do jornalismo. Inscrevia-se naquilo que o escritor poderia ter designado por programa do "bom observador", essa figura que, em seu entender, "tende a rarear no nosso tempo, precisamente na medida em que a perfeição da observação científica dispensa o homem comum do encargo de observar, dando-lhe a papa feita, por assim dizer, em pratos chamados 'diagramas', 'organogramas', 'telex'...Assim o nosso tempo se tornou num grande cartaz de índices, além de código de sinais. (...)Assim viciados (...) como havíamos de ser, na marcha para o ano 2000, bons observadores?" (V. Nemésio, "Jornal do Observador", Lisboa, Imprensa Nacional, p. 24).
Com vasta sabedoria para integrar os "signos de agora" (título de outra obra sua) em contextos históricos e culturais mais amplos, Vitorino Nemésio era o exemplo do tal "bom observador", capaz de iluminar os mais variados e inesperados ângulos de um acontecimento, por banal ou desinteressante que fosse, mas afastando-se sempre do "estilo conceituoso, pensamentista" porquanto, em seu entender, "só raros conseguem lapidar assim as ideias", como "Pascal e Nietzsche, por exemplo" (V. Nemésio, op. cit., p.173).
A notoriedade do grande escritor ficava a enorme distância da popularidade do teleconferencista. Mas não há que estranhar o aparente paradoxo, característico de país pouco letrado. Nemésio foi o nosso maior cronista televisivo, na acepção plena da palavra. Provavelmente, terá sido também o último, porque, entretanto, esse género quase desapareceu do pequeno-ecrã. Perante a concorrência aguerrida - com recurso a novelas, concursos, "reality-shows" e notícias de "fait divers" - nenhuma televisão generalista ousaria programar o "Se bem me lembro" a horas de grande audiência. Talvez às duas da madrugada, Vitorino Nemésio, se ainda vivesse no ano 2002, pudesse gozar o seu momento de minoritário esplendor televisivo.


Carlos Alberto Alves

Sobre o autor

Carlos Alberto Alves - Jornalista há mais de 50 anos com crónicas e reportagens na comunicação social desportiva e generalista. Redator do Portal Splish Splash e do site oficial da Confraria Cultural Brasil-Portugal. Colabora semanalmente no programa Rádio Face, da Rádio Ratel, dos Açores. Leia Mais sobre o autor...

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