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quinta-feira, 19 de abril de 2018

Do escritor Joel Neto


REGRESSO A CASA

Um diário açoriano

de JOEL NETO


O diabo do velho arrefiou-me o olho

Lugar dos Dois Caminhos, 5 de Abril
Há pouco dei por mim a ler as letras pequeninas de um contrato. Era um contrato com uma dessas empresas do costume, com que assinamos um contrato de fornecimento de serviços, mudamos de residência ou transferimos a titularidade e ficamos agarrados para a vida. Imaginei-me a ser visitado por um mafioso sorridente, um dia destes – só para me dizer que eu tinha uma mulher bonita e uns cães amorosos, claro. De maneira que peguei na lupa, porque já nem os óculos novos chegam, e pus-me a ler as letrinhas pequenas.

Lembrei-me de quando o meu avô era vivo. Foi ele quem pela primeira vez me chamou a atenção para as letrinhas pequeninas de um contrato. Já nem me lembro de que contrato falávamos: quando ele morreu eu tinha 20 anos, pelo que o contrato devia ser dele. A certa altura disse:
– Uma pessoa tem de ler as letrinhas, porque isto às vezes há gajos que.
O meu avô era um homem de São Jorge, muito antigo. Só dizia «gajo» quando se tratava de um caso sério. Olhei para ele e achei que, se calhar, estava a ficar paranóico. Ler contratos com uma lupa era como os tipos da Walt Disney desenhavam o Tio Patinhas. Gozo puro. Havia gente para tudo, claro, até para enfiar cláusulas matreiras nas letrinhas de um contrato, mas era preciso azar para nos enganarem logo a nós.
Outros tempos. Hoje, uma pessoa assina um contrato e já sabe que não é possível haver uma cláusula matreira escondida algures: é garantido que haverá. Várias cláusulas, todas legais, protegidas legalmente e legalmente dissimuladas. Nem vale a pena ler à lupa. Mesmo que essa pessoa escape às cláusulas expressas, será apanhada pelos vazios legais. E, se escapar aos vazios legais, é agarrada pelos procedimentos.
A verdade é esta: a dissimulação deixou de constituir uma excepção no jogo. A dissimulação, agora, é o jogo. Na economia business-to-client contemporânea, não só já não está em causa uma necessidade a suprir, mas já nem sequer está em causa convencer o cliente de que tem uma necessidade a suprir. A ordem é: fisgar, amarrar e sacar tudo o que for possível o mais depressa possível. Vendedor que não saque do cliente o dobro do valor correspondente ao que este pretendia consumir (e consumiu) nem merece tal nome.
Está em todo o lado, isto. Ontem, por exemplo, fiz download de uma aplicação que gostaria que me ajudasse a deixar de fumar. Trouxe a aplicação de uma plataforma onde nem o preço me mostraram. Já sabia que ia pagar, mas paciência: era por uma boa causa. Chegada a aplicação, não só tive de pagar pela compra como tive de pagar novamente para a accionar. Como havia duas opções e não sabia qual escolher, decidi ir pelo período de testes gratuitos, que agendou automaticamente a entrada em vigor da opção mais cara para dali a sete dias.
Agora é sempre assim, e não só no mercado digital. Os meus telemóveis, por exemplo. Custam uma fortuna porque dependo muito deles. Como não suporto falar ao telefone, preciso de tudo o mais a funcionar bem. Uso emails, redes sociais, aplicações, notas. Pois dali a dois anos, ainda o telefone brilha como novo, já tenho de comprar outro, porque as actualizações de software dão cabo do hardware. Desta vez, aliás, foi até mais requintado: ainda vão conseguir vender-me uma nova bateria antes de me venderem o telemóvel seguinte.
Dos fornecedores de telecomunicações, então, nem se fala. Uma pessoa adquire este serviço, mas depois há o imposto x, a box y e o extra z. No fim, fica a pagar mais do que ao fornecedor anterior, embora tenha downloads mais rápidos do que o Usain Bolt (dos quais o software dará cabo daqui a seis meses). Entretanto, ligam-nos do call center – não queremos nada e pedimos que apaguem o nosso número. Ligam-nos do call center – não queremos nada e pedimos que apaguem o nosso número. Ligam-nos do call center – não queremos nada, pedimos que apaguem o nosso número e ameaçamos com uma reclamação. Ligam-nos não só desse call center, mas de outro call center ainda, ao qual o primeiro, entretanto, vendeu a base de dados – fazer o quê?
Nem mudar de número vale a pena: há-de haver no novo contrato uma alínea microscópica com uma caixinha esbatida que não assinalaremos devidamente. No dia seguinte já o número estará não só naquele call center, mas em vários call centers. Nomes das pessoas? Não vale a pena guardar. Umas falam português de Portugal, outras português do Brasil, outras português de Cabo Verde – não importa. Nem estão cá. São apenas uma voz no telefone. A ausência de rosto é a nova alma do negócio. O segredo já deu o que tinha a dar. Vivemos o tempo da dissimulação.
Ao pé disto, a pequena vigarice dos comerciantes tradicionais era uma brincadeira. Metiam dois e quinhentos no avio, roubavam 50 gramas nas azeitonas, acrescentavam um pacote de manteiga ao rol. Ficávamos furiosos. E continuamos a ficar, porque têm rosto: aquele merceeiro é um sacana inominável e nunca mais vou àquela mercearia. Já o nosso fornecedor de comunicações, ou telefones, ou seguros fanar-nos 30 euros por mês, ou agrilhoar-nos a uma renda desnecessária de 1500 de dois em dois anos, ou ser confrontado com um sinistro e pôr-se na alheta – tudo isso, enfim, paciência, já se sabe como é.
Não é capitalismo, isto. Isto já é outra coisa.
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* alguns destes textos são originalmente publicados no “Diário de Notícias”
Carlos Alberto Alves

Sobre o autor

Carlos Alberto Alves - Jornalista há mais de 50 anos com crónicas e reportagens na comunicação social desportiva e generalista. Redator do Portal Splish Splash e do site oficial da Confraria Cultural Brasil-Portugal. Colabora semanalmente no programa Rádio Face, da Rádio Ratel, dos Açores. Leia Mais sobre o autor...

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