“FAROL DE NEVOEIRO” – 18 novembro
O último suspiro da reportagem
“O repórter é o que vai e vem, olhar rápido, palavra célere”
(Adelino Gomes)
Entre os diversos géneros do jornalismo, todos com objetivos bem definidos e técnicas bem precisas, um sobressai em qualquer curso ou formação na área: a reportagem. A vertigem de contar no momento o que se está a passar, a capacidade de síntese para selecionar a informação necessária e verdadeiramente relevante entre todos os elementos disponíveis, a equidistância para ler os diversos ângulos de ataque da notícia em causa, a independência para se sentir apenas obrigado e responsabilizado pelos seus leitores, ouvintes ou telespetadores, a experiência para suportar pressões, agendas, “sound bites” ou conveniências dos poderes político, económico ou judicial.
A reportagem é o que verdadeiramente nos leva ao cerne da notícia, aos factos nús e crús, ao que realmente sucedeu ou está a suceder, ao terreno, ao local, aos protagonistas. Por isso, não é repórter quem quer ou quem, por circunstância casual de agenda ou disponibilidade, é colocado em posição de relatar o que os seus olhos vêem. É repórter quem sabe, quem consolidou a frieza necessária para se ater exclusivamente aos factos, quem não empola mas também não diminui, quem é influenciado apenas pela realidade, quem escapa à vertigem do direto e à ilusão do protagonismo.
Falo-vos do mais nobre género jornalístico. Há mais de trinta anos, Adelino Gomes, o “mestre dos mestres”, provavelmente o melhor e mais bem preparado jornalista português de rádio e televisão do tempo da democracia em Portugal, sublinhava-me isso mesmo, quando me encontrou em início de carreira, tímido mas determinado, disponível mas ingénuo, talvez capaz mas ainda imberbe. E criou em mim e num punhado de colegas de curso preparados para abraçar o verdadeiro sonho de um jornalismo mais ativo e participativo, um raro mas fundamental “mecanismo de autocontrole”: a dupla ou tripla verificação dos factos, o cruzamento das fontes e da sua fidedignidade, a fuga sistemática à facilidade da especulação, o respeito por todas as opiniões e posicionamentos, a necessidade absoluta de domínio do racional sobre o emocional. Dominadas ou, pelo menos, interiorizadas estas técnicas, o repórter pode então partir para o terreno, onde tudo sucede, numa espécie de campo aberto sujeito a todas as influências, e em que a mensagem, na maior parte dos casos pura e dura, pode estar travestida de acordo com circunstâncias ou protagonistas excecionais, mudando o curso dos momentos ou marcando-os para sempre.
A voragem do imediatismo, do direto como arma superior a todas as outras, uma voragem errada e perturbadora, pode fazer-nos esquecer de um outro princípio estruturante da atividade jornalística: o jornalista é um procurador da opinião pública, no sentido em que intermedeia a mensagem, mas não é um justiceiro, no sentido em que jamais se pode substituir ao poder judicial e entregá-lo ao povo. Valem, neste momento específico da sua ação no terreno, os princípios básicos que referenciei no início deste texto. A corrida desenfreada por uma “primeira mão” que, na realidade, pode não o ser, a falta de cuidado na leitura das situações, a necessidade de dizer mais que a concorrência e, acima de tudo, de causar mais impacto que a concorrência, é, as mais das vezes, o primeiro passo num caminho minado e perigoso. Ainda pior, é a tendência para se substituir à própria justiça, para opinar em vez de reportar, para tentar influenciar a montante ou para comentar a jusante, adjetivando de forma crítica e, subrepticiamente ou de modo mais aberto, manipulando a opinião pública. O jornalista que é repórter não pode, em nenhuma circunstância, pisar o risco da tendência, usar a roupa da conveniência, vestir a mensagem de acordo com o maior ou menor impacto que ela possa causar, travestir as suas funções e transfromá-las numa espécie de “justiceiro” de microfone na mão, que confunde liberdade de expressão e informação e que não reconhece os seus limites éticos e técnicos: a tal barreira do repórter, que vai e vem, tem olhar rápido e palavra célere para contar o que se passa.
Porque é disto que se trata a reportagem: contar o que se passa, jamais contar o que o repórter gostaria que se tivesse passado, ou terá alguma vez pensado que se poderia ter passado. Quem, há mais de trinta anos, foi formado na profissão a respeitar por inteiro estes princípios como uma cartilha incontornável e numa prévia declaração de intenções e práticas profissionais, não pode deixar de se alarmar e de se questionar quando, nos tempos que agora correm, sente o rigor ultrapassado pela urgência, o equilíbrio traído pela inexperiência e a independência trocada pela conveniência.
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