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O jogo dos homens devastados
E agora aqui estou, com a memória dos momentos em que falhei, das pancadas em que tirei os olhos da bola ou abri o cotovelo direito no downswing ou, receoso de me ter posicionado demasiado longe do contacto, me cheguei demasiado perto. Tenho a impressão de que, se fizer um esforço, sou capaz de recapitular todos os shots do dia – cada um dos noventa e quatro, incluindo os cinco ou seis que me custaram outros doze ou treze e me atiraram para longe do desempenho dos bons tempos. Mas, sobretudo, sinto o cheiro a erva fresca, leite morno e bosta de vaca dos terrenos de pasto em volta. E viajo pelos outros lugares onde pisei o verde. Em Tróia e na Praia Del Rey. Nos campos suaves do Algarve e nas nortadas de Espinho e da Póvoa de Varzim. Nos paraísos artificiais de Marrocos, em meio da tensão competitiva do País de Gales e na Herdade da Aroeira, com os irmãos Barreira e o Maurício, e o Vítor, e o Sérgio, e o Abad, e o Rui, e todos os outros.
Que saudades tenho da Aroeira. E das nossas expedições pelos campos da Grande Lisboa – dos tugúrios desoladores de Benavente às berrarias exibicionistas do Estoril e Cascais. E daquelas venetas que nos davam para jogar os grandes campeonatos, em pares e até sozinhos, e onde quase nunca algum de nós chegou sequer à mediania. Que saudades tenho daquilo, um grupo de homens com tanto que fazer em casa, todos razoavelmente devastados, todos preferindo estar ali – perseguindo de ferros em riste o seu (como dizia Churchill) comprimido de quinino através da pastagem. Como é irrepetível esse tempo, agora, ao fim de tão longo afastamento. E como eu o senti esta tarde, em instantes intermitentes, ao atravessar o fairway ao lado do João, ambos tão destreinados já daquilo que sabíamos fazer e talvez já nem saibamos.
Ah, o que eu gostava de jogar golfe, cirandando entre a flora e a fauna em busca do inefável. E como eu odiava jogar golfe, ao mesmo tempo, porque toda a minha vida era apenas isso, jogar golfe, e tudo o mais apenas os aborrecimentos infinitos do homem que faz contas ao tempo que falta para jogar golfe outra vez. Quantos livros escrevi, afinal, nesses dez anos em que o joguei com a avidez de um menino? Quantos livros em condições, pelo menos? E, no entanto, quantas vezes voltei a ser menino depois de pendurar os tacos na garagem?
Nunca mais fui menino como naquele dia em que, jogando sozinho no encantador tormento a que em Ponte de Lima chamam campo de golfe, fechei o back nine duas abaixo do Par e depois não havia ninguém para servir de testemunha. Nunca mais fui menino como naquele dia aqui na Terceira em que levei o Jorge da Agualva ao sétimo buraco do playoff, celebrando com tal alegria o segundo lugar no torneio que só depois me lembrei que até tivera um putt para ficar em primeiro e não me concentrara como deve ser. E também nunca mais fui menino como naquele dia em que, chegado às imediações do green do 17 do Aroeira 2 no Par do campo, que nunca tinha igualado, fiquei não nervoso que fiz triplo-bogey com duplo hit e tudo. Nem como naquele em que, no 6 da Penha Longa, o buraco lindo atrás do qual passa o aqueduto que os fotógrafos estrangeiros adoram, nos afundámos ambos um ao outro, eu e o António, porque não havia decisão razoável que o nosso impulso de autodestruição não sabotasse.
Como eu gostava de ser menino a dois também. E como éramos tão bons meninos a dois, eu e o António, conversando sobre literatura, brandindo o driver e rindo da nossa própria trapalhice. Quantos torneios jogámos a dois e quantas vezes, na hora de concluir, pura e simplesmente nos dinamitávamos, como se tivéssemos medo de erguer fasquias que depois não pudéssemos sonhar vencer.
Também ele veio comigo hoje, o António. E o Luís, o outro irmão Barreira – e o Maurício, e o Vítor, e o Sérgio, e o Abad, e o Rui. Caminhávamos pelo fairway, ao lado do João, e às vezes nem abríamos a boca: era o nosso silêncio que contava das nossas solidões, afinal tão parecidas umas com as outras. Então, um de nós metia um tee shot comprido e direitinho, para lá dos lagos e dos bunkers, e celebrávamo-lo todos juntos: “Bom shot.” Depois outro fazia um daqueles slices paralisantes, a bola no meio do cerrado, perdida entre a erva, e baixávamos os olhos, lamentando ter saído de casa.
Porque o golfe se fez em primeiro lugar para atestar da impossibilidade do Absoluto, mas afinal trata-se da lição mais difícil de todas – não é assim?
Portanto aqui estou, a pensar nisso tudo, com as pernas cansadas de uma rotina de que se tinham esquecido e os tacos pendurados de novo na garagem porque, agora, já não preciso ir amanhã outra vez. Deixei de ser um homem devastado, devolvido ao espaço e aos cheiros de vida, e tão-pouco me inquieta hoje a impossibilidade do Absoluto, da Perfeição ou da Eternidade. Um homem ganha uma força enorme quando deixa de acreditar em palavras com letra grande. Mas, apesar disso, comprometemo-nos a jogar uma vez por mês, eu e o João. Ensinaremos o Matthew. O Matthew, sim, o Matthew carregará o que restar da nossa obsessão, durante uns anos – até que chegue o momento de também para ele seja suficiente brincar como um menino uma vez ao mês.
Foto: © António Araújo
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