VIVA O FADO!
“Perguntaram-me outro dia se eu sabia o que era o fado. Eu disse que não sabia”… nem ainda sei ao certo se há, de facto, uma definição exata para esta riqueza genuína do nosso património cultural. Admito, no entanto, que só fiquei a conhecer melhor esta nossa maravilha musical depois de ter imigrado, já lá vão quatro décadas.
Acabava de trocar a minha pequenina Terceira por esta imensa Califórnia. Trazia comigo aquele irriquieto bichinho das iniciativas culturais da juventude e toca a envolver-me em teatro ensaiado por puro amor à arte. O primeiro projeto levou-me logo ao extinto Clube Recreativo Família Portuguesa, em San Leandro – cidade então com rica presença lusa e onde me radiquei até hoje. Foi cá que tive a felicidade de conhecer Leonel Medeiros, um dos maiores artistas no exímio dedilhar da guitarra lusitana por estas bandas.
Mestre Leonel, falecido há poucos meses, não só deliciou os portugueses destas paragens durante mais de meio século com o melódico trinar do seu cativo instrumento como inspirou vários jovens tocadores e fadistas que hoje o recordam com terna saudade. Dentre eles, o nosso multitalentoso Hélder Carvalheira, brilhante músico que a comunidade bem conhece, guarda do Mr. Medeiros a melhor das impressões. “Passámos muitas horas juntos e a ele devo o fácil domínio deste mavioso instrumento que nos enche as medidas. Nestas coisas, conta tanto a vontade teimosa de se aprender como o jeito paciente de se ensinar. Ele tinha-o. Por isso, estou-lhe eternamente grato.”
Ainda jovem residente de San Leandro, o Hélder começou por tocar em agrupamentos comunitarios (Arco-Íris, Lusitanos…) mas o seu amadurecimento como músico, aos poucos, trouxe-lhe a paixão pela guitarra que agora não larga. Sobretudo, após uma melindrosa operação cirúrgica obrigando-o a parar por algum tempo, regressa agora com revigorado incentivo que não pretende desaproveitar. O recente regresso deu-se precisamente na acolhedora cidade de San Pablo, onde o fado costuma ser sempre muito bem recebido.
A fria noite de sábado (dia 3) pedia calor humano e a nossa gente correspondeu em grande. Casa cheia, refeição de requinte e um ambiente formidável fez com que ninguém arredasse pé durante mais de cinco horas seguidas. O programa teve início ainda antes das sete e já passava da meia noite quando os derradeiros aplausos fizeram levantar as cento e cinquenta pessoas visivelmente agradadas com o serão saboreado em pleno. Tratava-se de um jantar cujos fundos revertiam a favor da Irmandade do Espírito Santo local. Hélder Carvalheira convidou o seu irmão Alcino e o seu amigo Steve Soares para acompanharem um fantástico trio de vozes – Ângela Brito, Linda Santos e David Garcia – que cantaram e encantaram quem lá foi.
Tive a oportunidade de ir com a família e associarmo-nos às demais famílias num convidativo espaço onde se conviveu em português, inglês e até algum espanhol. Porque o fado é assim – atravessa fronteiras e desconhece barreiras. Sente-se bem cantado na nossa língua mas a sua linguagem tem claro apelo universal. Marisa, atual expoente máximo da nossa canção nacional, confessa notar com alguma frequência, nos seus concertos ao redor do globo, gente estrangeira de lágrima no olho. Mesmo que não entendam as palavras entoadas, subentendem os sentimentos expressos. Essa é a grande vitória do fado, que não tem de ser necessariamente melancólico ou colado à saudade para penetrar a alma de quem o escuta onde quer que seja por esse mundo fora.
Nesta nossa cosmopolita Área da Baía de San Francisco, temos sido previlegiados ao longo dos anos com executantes de primeiríssimo plano a proporcionarem-nos inesquecíveis noites de fado. Com o peso da idade a afetar alguns dos nossos mais veteranos nestas andanças, há quem tema ou questione o futuro do fado por cá. Não sou desses. Pelo que me foi dado presenciar em San Pablo e depois de conversar com os briosos artistas da noite, vi nos seus olhos renovado orgulho nas nossas raízes e ardente paixão pela causa fadista. Exige-lhes sacrifícios adicionais por não serem profissionais mas, em contrapartida, oferece-lhes motivação extra porque o fazem, de mil amores, com clara vontade de se tornarem ainda melhores.
Melhor impressionado, por mim, não podia ter ficado com aquela noite bem digerida à portuguesa no aprazível ambiente de San Pablo. Achei a organização do evento quase impecável e, ainda mais importante, vi toda a gente sair da sala respirando ar feliz. Quando assim é – Viva o Fado! – estamos todos de parabéns.
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