CORISCO CORAÇÃO LEONINO
Metas há reconhecidamente comuns a quase todos nós, seres humanos, ao longo da nossa suada vida. Mais larga do que comprida – assim a rotulamos, por vezes, reduzindo-a a uns escassos dois dias. O popular desabafo corre mundo de boca em boca desconsolando tanta gente chateada com o tempo que voa e não perdoa, porque a idade chega-se e quem não gostaria de gozar mais uns bons aninhos por cá? Trata-se dum claro desejo que nos une ao redor do globo – podermos disfrutar duma vida longa, desde que ajudada pela sorte da melhor saúde a acompanhá-la bem de perto – uma equação certamente feliz, mas difícil de alcançar. Porque, se não é a saúde que falha, será a sorte que se escapa e pronto – lá temos os dias contados.
Das benditas falas que ocasionalmente debulho com o meu amigo João, Bendito também nas deliciosas crónicas que vai urdindo cá no jornal, umas acertam...outras não. Gostamos de falar e evitamos discutir, a não ser que a tralha do Trump se intrometa e nos venha azedar a conversa. Pedi-lhe para nos deixarmos disso porque, para mim, é tempo perdido. E a vida é curta, chegámos ambos facilmente a essa chata conclusão. Até parece que foi no outro dia que andávamos a trabalhar juntos, era eu ainda rapaz solteiro e agora já sou avozinho. São os netos que, mal chegam, nos previnem da luz lá ao fundo do túnel e nos apontam à curva descendente dos dias que nos restam. Isto, para aqueles de nós felizardos em atingirmos os sessentas, setentas, oitentas ou mesmo noventa e tantos anos vivinhos, sorridentes.
Pelas mais diversas razões, azares indesejáveis, essa fortuna não cabe a todos. Qual de nós já não teve um familiar ou amigo que partiu cedo demais, para nosso profundo desgosto? “Andamos neste planeta há múltiplos milhões de anos, inventámos inúmeras maravilhas, até fomos à lua e navegamos no Espaço, mas custa-me perceber como a inteligência humana ainda não conseguiu superar-se encontrando a tão almejada cura para determinadas doenças que nos encurtecem tanto o nosso pedregoso percurso terreno. Dará para entender como é que a média geral das nossas vidas, cá nos superdesenvolvidos States, ainda não vai além duns meros setenta e cinco anos?” O João questiona e eu subescrevo. Será que não merecíamos viver consideravelmente mais tempo?
Tudo depende da qualidade de vida. “Que adianta vivermos a penar?” A pergunta saiu sincera da boca do meu amigo Joe Meirelles, há coisa de duas semanas, quando festejávamos precisamente o seu nonagésimo aniversário. “Noventa anos é muito tempo”, dizia-me ele sorrindo ao brindarmos à sua remendada saúde com as Heinecken do costume, bem verdinhas como a sua paixão leonina. “Sou sportinguista desde que me conheço cativo do nosso verde símbolo – a esperança é a última coisa a morrer.” Mr. Meirelles esteve recentemente às portas da morte. Um reles cancro na bexiga trancou-o no hospital por quase um mês. Deixou de a ter. “Estive pelas pontas. Mas não era a minha hora de andar.” Só ele sabe como escapou. E eu também não hesito em mimar-lhe o ânimo brincando com a nossa “futebólica” rivalidade – “o meu amigo fique descansado que a sua hora ainda está longe. Primeiro, o Sporting tem que ser campeão.” Ele aprecia os meus gracejos e fartamo-nos os dois de rir, como pede o segredo da longevidade.
Desde que se lembra da sua longínqua meninice micaelense, então a despertar para a vida na pacatez urbana dos anos trinta em Ponta Delgada, seu doce berço ilhéu, José Meirelles sempre foi um tipo bem-humorado. O seu aventureiro espírito de jovem disposto a correr mundo, levou-o a seguir o irmão mais velho, engenheiro rodoviário, até à prometida terra de sonho que era a Angola das décadas de cinquenta e sessenta, onde cimentou a sua vida profissional como bancário no “paraíso” (palavra sua) chamado Luanda. Depois veio a buliçosa década de setenta com os rubros cravos de abril e “sabes, Luciano, o que é, dum momento para o outro, seres obrigado a fugir para salvares a tua pele e a da tua família, deixando para trás praticamente tudo menos a roupa que trazias no corpo?” Claro que se referia à tal “descolonização exemplar”, cujas cicatrizes emocionais, pesadelos pesadíssimos, jamais conseguirá sacudir.
Valeu-lhe a Califórnia, este acolhedor “paraíso” (palavra minha), sempre feliz em poder prolongar a vida a quem essa sorte lhe sorri. Eu e o João vamos nos sessenta e tal. A média anda nos setenta e pique. Escusamos fazer contas, mas quem pergunta não ofende, “amigo Meirelles, haverá mesmo algum particular segredo para se atingir os noventa assim tão joviais?” A minha curiosa pergunta saiu-me de dentro, tal como a sua jocosa resposta. “Segredos...?...Só se for a muita malagueta que comi e me curtiu o sangue ao longo da vida... (um curto parêntesis a registar aqui a nossa mútua gargalhada) ...ou talvez este corisco coração leonino que tanto me tem ensinado a sofrer e saber esperar... até um dia.”
Espero bem que esse dia demore. Leões e Águias vão-se defrontar duas vezes no curto espaço de três dias e a coisa promete aquecer, se não mesmo escaldar. Atinja lá o calor o grau que atingir, sejam quais forem os resultados finais, eu e o meu amigo Joe prometemos um ao outro refrescar os ânimos e baixar a febre com mais umas apetecidas verdinhas. “Nisso, o Sporting ganha sempre...”, dizia-me ele abraçado à sua mimosa foto de quando era setenta anos mais novo, “... por mais glorioso que seja o teu Benfica e prestigiosa a sua marca, diz-me lá porque é que vermelhinhas ainda não há?” Foi um manhoso contra-ataque que me apanhou sem resposta. Ri-me e rendi-me à sua brilhante jogada. “Que haja, ao menos, saúde bastante (e desportivismo também)! Pois, na realidade, esta vida são dois dias. Mas, se forem três, melhor ainda.”
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