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485º Aniversário da Cidade de Angra do Heroísmo

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2019

Da poetisa-escritora Maria Azevedo


Do livro Arquipélago do Sentir

CONTINUAÇÃO

Preso ao mar e ao céu, sem tempo bom para partir, um esvoaçar manhãzinha com cheiro a madressilvas de rosas em botão...
O chão tremia debaixo dos pés (talvez tentasse libertar-se das suas amarras e ela ficava sempre sem saber se seria por isso, ou porque se zangava com ela o mar.
A lua, essa vinha e sempre encostada ao Oceano Atlântico, não se sabia nada de comboios que corriam por cima e por debaixo da terra... que coisa estranha, pensava ela, enquanto desenhava ondas e peixes na lousa negra encaixilhada de madeira...
Pedaço seu, este de terra, que não se podia violar.
Amassava o gosto das horas, trincando alfarrobas, em coloridos de verdes e azuis.
Sentada à mesa do seu café do costume, revia a casa de porta verde...
Era o tempo de ler Álamo e carregar no peito só, turbilhões de ideias.
Encostada à memória uma lágrima deslizava, brotando do seu coração, trevo verde; ainda não tinha o seu nome gravado em pedra de cais-partida.
Cais... eram também metros de cordame, enrolados lá para os lados do Corpo Santo.
Cordas tinha ela, desde que a sua bisonha cegonha a pousara, em terras de Jesus Cristo.
Em cantos de esconder recordações, foi-lhe aquele semear de palavras sepultadas em anos de acumular saudades, germinando páginas de trazer ao de cima, boiando como nenúfares.
E em noites de invernia Beirã, quando o vento lhe trás outros zumbidos de ventos de mar, nascem estas histórias, histórias de ser-se ilhéu, contadas em sobressalto, esperando o naufrágio ou o porto seguro, que vem de tão nevoeiro, quais passos de menina esperando um ralho.
Tinha sido ela, menina de mil ralhos, que mais um, menos um, já nem fazia diferença nenhuma.
Agora o que importava, era completar o que se tinha proposto, o que no dizer da ilha que lhe navegava o peito, era novelo a desenrolar, era corda de amarra solta à espera de mãos de timoneiro, mestre de barco, embarcadiço, que duvidava que tivesse...
As suas mãos tinham sido semeadas em dias de temporal, à laia de nuvens.
Tinha sido ela nascida em fogos de queimar de mansinho, até mesmo quando o tempo parava dentro dela, queria a sua solidão de gaivota, construindo casas de sonho, lançando papagaios de papel, lá para os lados da Casa da Ribeira...
Hoje não sabia se tinha olhos de horizonte... ou um horizonte nos olhos.
Encostou-se à casa dos dias e retomou o fio intacto do pensar-se por dentro, estendendo-o à beira de si.
Beira de si, era o lugar onde a ilha se colava ao sentir-se, modelando o ser-se, era o som das tardes mornas e pacatas de Verão amolecendo o verbo partir.
Eram todas as impressões com registo nos seus sentidos desdobrados, acreditando sempre em outras marés, ai o tempo e o espaço de as encontrar... espaço de agonia, humidade fininha que lhe dava uma enorme vontade de chorar, quando as pessoas passavam para o cinema e ela rodeada de palavras que saltavam errantes, por todos os atalhos e canadas do seu ser prenhe de muitas ilhas, partindo à descoberta daquele navio em si ancorado.
Encostava-se à cama de campanha que vivia abandonada lá para o sótão, espetava os pés no tirante, que tectos baixos aqueles os seus, (talvez daí o seu destino de ave inquieta), saboreava o odor da sopa de feijão com funcho... era dia da tia Emília cozer, já quase sentia o cheiro do pão e dos biscoitos de amoníaco pela Guarita abaixo.  Ponto final, que ela tinha nascido feita de outras ilusões, que não tão gastronómicas.
Arrumava-se, saboreando o profundo mistério das coisas, que as coisas da noite lhe contavam, tornando ainda mais ilhéu, aquele mar de interno navegar.
Ninguém aquela ilha lhe podia tirar.
Nem todos os ciclones a Oeste, nem todas as marés de Maio soprando de dentro das águas.
Funcionavam seus sentidos como aves e escudos, numa mistura bem amassada, revolvendo-a em pausas e compassos que sempre se renovavam, mais fortes que marés rolando areais.
Foi o tempo de fins. Fim da cama de campanha e da sopa de feijão com funcho.
Recortavam-se novos caminhos, janelas se iam abrindo receptivas como almas de mareantes.
Fragmentos de esperança soltavam a mola da memória, rolavam imagens, coro de águas marinhas, capazes de nascerem ilhas-vulcões tempestade errante.
Recusava todos os ombros condoídos... um ilhéu é sempre inteiro.
Voltar à infância era nebulosa perdida.  Em noites de compromisso atirou ao céu a sua última estrela.  Estará ela ainda iluminando caminhos, revolvendo atalhos, ou terá ficado pendurada em fios de luar, nas noites em que as gaivotas choram pelo cais?
Longas horas, dormentes, tinham os dias que faziam o espaço de viver, o mover-se da lentidão... saboreava-o em ondas de revigorar.
Penetrava-lhe o silêncio do repouso pousado do corpo, enquanto por dentro os seus vulcões explodiam em novas descobertas e ideias.
Foi-se então assemelhando a noites de luar, aprendendo o gosto, deixando-se alastrar até à raiz dos sorrisos.
Nascendo no caule da vida, estavam intocáveis, brilhando, as coisas que por dentro de nós formam, pássaros, madrugadas.
Metendo as mãos neste calor antigo, sobe-lhe ao peito o cheiro a terra molhada... a voz dos pescadores entrando cais dentro... uma onda subindo a rocha e o Manel da Lídia, lá ia, pés de amanhecer ordenhar as vacas, descendo o Pico Celeiro... e a chuva miúda transforma o sol num queijo tremido.
Ilha pequena com tudo lá dentro, um bloco de terra e vida que ela pressentia acordá-la em segredos, segura de si, suporte maciço, significado e identidade de um ilhéu, deixando antes e depois de tudo a força das origens.
Sentada no pequeno bote, até já tinha um buraco no fundo, há tantos anos abandonado no varadouro... seguia o rasto daquela maré baixa, imobilizando por dentro a ampulheta do sentir.
Na vida tinha de se fazer opções, ela sabia que cedo teria de partir, aquele amor caminhava dentro dela com passos de despedida ,entornando ritmos, à espera da mudança.  Custava.

CONTINUA
Carlos Alberto Alves

Sobre o autor

Carlos Alberto Alves - Jornalista há mais de 50 anos com crónicas e reportagens na comunicação social desportiva e generalista. Redator do Portal Splish Splash e do site oficial da Confraria Cultural Brasil-Portugal. Colabora semanalmente no programa Rádio Face, da Rádio Ratel, dos Açores. Leia Mais sobre o autor...

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