FIGURAS CASTIÇAS
O FIFI DAS FLORES
Na última edição deste nosso Tribuna, fomos
obsequiados com um maravilhoso texto do afamado cronista Luciano Cardoso.
Não foi novidade nenhuma. Já há largos anos que o
Luciano enfeita o jornal com os seus saborosos Rasgos d’Alma.
Mal recebo o Tribuna – e sei que outras pessoas fazem como eu – vou logo
direitinho ler a crónica dele. Desta vez trouxe-nos à estampa uma figura
popular dos Biscoitos, a freguesia que o escritor qualifica sempre como A
Capital do Norte. Do norte da ilha Terceira, entenda-se. Falou-nos do José
Cácanta, um simpático espertalhão que fazia trinta por uma linha para beber uma
pinga de vinho de cheiro. Teve sorte, o José, nasceu mesmo ali ao lado, nos
Altares, freguesia vizinha da terra onde se produzem dos melhores vinhos dos
Açores.
O que eu gostava de trazer aqui à baila era um
desafio. Não uma cantoria ao desafio, que para isso tenho pouco jeito, que me
perdoe o meu bisavô, o carroceiro Manuel Machado Alves, do Raminho, que, no seu
tempo, também botou cantigas nos terreiros da ilha. Só gostava era que o
Luciano, com o seu incomparável engenho e arte, escrevesse mais estórias de
outras figuras populares da sua freguesia. Eu sei que ele as tem guardadas na
memória, já me contou algumas delas, das que ele viveu e conheceu e das que
ouviu da boca do Ti Arnaldo “Madeira”, seu pai, e da dos seus avós.
Eu sei bem o que ele vai responder: “Pois então
conta também tu algumas das que tens guardadas na gaveta da secretária”. Posso
argumentar que as que eu sabia já as narrei no livrinho “A Loja do Ti Bailhão”,
que publiquei com o meu irmão Jorge Bendito. E, para mais, as figuras típicas e
engraçadas da minha “freguesia”, a cidade de Angra, já foram todas retratadas e
superiormente descritas pelo Mestre contador de estórias, Augusto Gomes.
Claro que, por toda a parte, aparecem novos tipos
que se vão tornando famosos. Há bem pouco tempo foi lançado, em Santa Bárbara
da Terceira, um volume de estórias de gente daquela freguesia. Mas é importante
que mais autores venham a lume com a publicação de livros a recordar pessoas e
factos que nos podem ajudar a não esquecer o passado. Escreveu Victor Rui Dores
que ”... a luta contra o esquecimento é a
razão primeira da Literatura
em qualquer uma das suas formas ou géneros”.
Para que o Luciano se entusiasme, tomei a liberdade
de vos falar hoje de uma dessas figuras de Angra do Heroísmo, o célebre Fifi
das Flores.
Pode ser que, depois, apareçam outras estórias.
Veremos.
Haja saúde, Luciano.
FIFI DAS FLORES
Nunca vim a saber ao certo como se chamava. Já li
de o chamarem António e até de José. O nome de família também não sei. Essa
coisa de nomes de família não se ajusta a gente simples. E o Fifi era pessoa
simples. Simples de mais, era Fifi das Flores e pronto.
Vi-a o passar, sempre meio distraído, costas
vergadas, andrajoso e descuidado, pelas ruas da cidade. Os óculos eram mais
fortes que vidros de garrafa, nos pés umas sandálias já muito velhas e
rebentadas. Por cima dos ombros, sem vestir as mangas, usava uma “suera” de
malha grossa e colorida que alguém lhe mandara da América. Agora que penso
nisso, não me lembro se usava chapéu ou barrete. Mas lembro-me que as calças,
assim como o ocasional casaco, poderiam aguentar-se sozinhas em pé, de sebosas.
Era mestre a confeccionar flores. Colectava pedaços
de chitas, sedas, meias de vidro velhas e outros tecidos coloridos. Com uns
arames, conseguia armar bouquets vistosos, que vendia às senhoras das
freguesias. Eram muito úteis para enfeitar os santinhos, nos oratórios
caseiros. E deixaram-lhe a alcunha que o acompanhou toda a vida.
Vivia ali no Corpo Santo, em casa de uma irmã, na
Rua do Cardoso, em frente à sede do Marítimo. Duas casas mais acima, a vizinha
Lurdes do Pico, vidente e curandeira de alta fama, era a sua companheira de
conversas e de orações. Fifi deve ter aprendido algumas das artes ocultas, os
seus serviços criaram nome e foram até requisitados por um treinador
continental que veio para o “Lusitânia”. Fifi esteve incumbido, naquela época,
de ir benzer os balneários e os equipamentos dos lagartos de Angra,
desesperados por vitórias no campeonato. Nunca soube se as mesuras resultaram,
as que ele ajudava a Lurdes do Pico essas sim, devem ter sortido bons proveitos
porque a casa estava sempre num frenesim de gente a entrar e a sair.
Ali mesmo, na Rua do Cardoso, a casa da Tia
Angelina “Segura” era também ponto de muito movimento. Nas tardes de Verão as
netas da respeitável anciã reuniam-se nas brincadeiras próprias de crianças em
idade escolar. Passeavam, rua abaixo, rua acima, os toscos carrinhos de bonecas
que tio Tibério tinha construído com umas sobras de madeira e corriam,
desalmadas, a brincar ao esconder. Santa altura em que as crianças podiam ainda
brincar na rua sem o susto de movimento de carros ou de outros perigos!
Sentadas na soleira da porta, a Luisinha, a Armanda
e a Maria Alice, desta vez entretidas com o jogo do anel, quase que nem davam
pela passagem do Fifi. No pequeno largo junto do Império da Caridade, meia
dúzia de rapazes já se tinham metido com ele, a caçoar com a indumentária e com
o raminho das flores que não tinha conseguido vender. Maria Alice, a mais
aventureira das três primas, aproveitou a embalagem da risota dos rapazes e
pôs-se a desafiar o Fifi.
Pobre pequena, não estava à espera da resposta do
transeunte, não foi lesta bastante para fugir quando o Fifi correu atrás dela e
a segurou por um braço. Levou-a de volta à porta da casa da avó Angelina e, sem
maldade (o Fifi não fazia mal a uma mosca), amarrou-lhe as compridas tranças ao
picaporte. “Agora grita pela tua avó para que te venha desprender!”, disse-lhe
o Fifi, já caminhando em direção à casa da Lurdes do Pico.
Uma coisa é certa, a menina nunca mais se esqueceu
do incidente. Tinha até pesadelos que a despertavam, a meio da noite,
assustada. Chegou a tentar convencer a mãe para lhe cortar as tranças, não
fosse o Fifi tornar a repetir a brincadeira.
Pobre Fifi. Acabou por ter um fim triste, como
triste deve ter sido toda a sua vida. Já idoso e doente, recusava o
internamento em casas de assistência social, preferia a liberdade de andar
pelas ruas e dormir onde calhava e bem lhe apetecia. Encontraram-no morto numa
pequena dependência da velha Praça de Touros de São João.
No regaço, trazia um ramo das suas artísticas
flores.
Lincoln, Ca, Julho 24,
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