485º Aniversário da Cidade de Angra do Heroísmo

segunda-feira, 23 de outubro de 2017

De João Bendito - Califórnia

DOIS PASSOS PARA A FRENTE...
Um passo para trás
Que lindo... nariz
Tem este rapaz!

                                                                  

Não era bem assim a cantiga popularmente atribuída ao simpático Mestre Alberto.
Não tenho coragem de a escrever aqui, não seria educado nem faria justiça à memória do cozinheiro e dançarino do Corpo Santo, até porque ele me merecia todo o respeito embora nunca tenhamos trocado uma fala. Era da idade de meu pai e foi vizinho da família da minha “patroa”.

A fama de Mestre Alberto era grande. Cozinhou para presidentes, ministros e mais gente importante e fina. E ensinou a dançar muitas gerações de jovens angrenses, alguns deles nunca admitiram que buscaram a sua porta para as lições de dança, não fossem cair nas bocas do mundo. Com um sentido de humor muito fino, Mestre Alberto sabia portar-se no seu lugar e não admitia brincadeiras ou piropos ofensivos à sua deficiência física ou à sua divergência sexual, digamos assim. Assumia-a com naturalidade, pese a falta de educação e de respeito que muitos manifestavam nesse campo.
Costumo contar uma pequena estória passada com o Mestre Alberto. Ele fora contratado para cozinhar o jantar da festa dos finalistas da Escola Industrial de Angra. Algumas das alunas ajudaram nas preparações, a descascar batatas, a lavar louça, etc. Claro que, quando se juntam raparigas, a risota e as brincadeiras vêm à baila. Mestre Alberto senhor do seu nariz, já não estava a gostar da folia e admoestou as alunas: “Meninas, prestem atenção ao que fazem! Com tanta risada, ainda vai haver mijo!”
Eu gostaria de escrever aqui que longe vão os tempos em que as pessoas eram olhadas com desprezo só por serem “diferentes”. Mesmo com todos os avanços, com todas as formas mais modernas de aceitação, ainda temos um caminho muito longo a percorrer. Tanto no campo da homossexualidade como no dos direitos humanos.
No fim de semana passado fui ao casamento da cunhada de uma das minhas filhas. Mas, afinal, que tem isso de especial, perguntarão vocês, casamentos há-os aos montes. Sim, é verdade. Mas este foi mesmo especial, foi o primeiro casamento gay a que assisti. As duas noivas, pessoas de quem eu gosto muito, já vivem em comunhão total há uma dúzia de anos mas agora resolveram aproveitar as mudanças legais e oficializar a sua união. Reuniram dezenas de amigos e familiares numa festa muito bonita onde era evidente o amor e respeito que elas recebem de quem as conhece.

Também tive a sorte que as minhas amigas Vanessa e Ally tiveram agora. Refiro-me ao suporte familiar, mesmo quando as nossas decisões possam ser contrárias às opiniões das outras pessoas. Quando, em pleno verão de 1974, poucos meses depois da Revolução do Cravos, eu e a Alice resolvemos casar, causámos um certo arreganhar das sobrancelhas nalgumas pessoas porque decidimos que não faríamos uma cerimónia religiosa. Bastava-nos o apoio e reconhecimento por parte da família e esse foi total e inequívoco. Nunca esqueço o momento em que, com a sua mão bem firme, com uma caligrafia tão bonita como nunca vi igual, o meu pai assinou o seu nome como primeira testemunha no documento que oficializou o nosso casamento perante a Lei. E nem esqueço o forte e sentido abraço com que nos envolveu, a mim e à minha esposa, quando nos desejou as melhores venturas para o resto da vida.
...
Fiquei deveras aborrecido com os acontecimentos em Charlottesville, onde mais uma vez ficou demonstrado que ainda existe muita miséria intelectual nesta América. Grupos de neonazis e outros quejandos aproveitam a cumplicidade do trapaceiro e mentiroso presidente para se armarem em chico-espertos e propagarem as suas nojentas e infames doutrinas. Como pode essa gentinha pensar que o que precisamos, nesta América e neste Mundo, é voltar aos tempos da escravatura, aos tempos da aniquilação de raças só porque “nós é que somos bons e melhores do que ninguém”. Se não concordavam com a remoção de estátuas de “heróis” dos tempos da escravatura, tinham outras maneiras de o fazer, não era empunhando símbolos fascistas e marchando armados até aos dentes que nem piratas, gritando slogans que ferem a mais dura das sensibilidades. Os grupos que lhes fizeram frente apenas tentaram demonstrar que não há lugar na nossa sociedade para tanta intolerância. E isso é o que este desavergonhado DDT não entende, que não pode comparar uns com outros e afirmar que no meio dos energúmenos havia muita gente decente. Como te podes considerar uma boa pessoa se marchas e gritas ao lado de nazis e supremacistas brancos? Tentou ele ser politicamente correto – coisa que, na sua campanha, desdenhava nos outros – e quer convencer-nos que, no outro lado, também houve violência e provocação. Não, senhor DDT – nem quero sujar o meu computador a chamar-te pelo nome - houve apenas resposta e defesa de ideais que são, afinal, os que ajudaram a criar e a construir esta Nação.
Estivesse Mestre Alberto entre nós, de certeza que não iria gostar de ver as misérias porque passámos nas últimas semanas. Aposto mesmo que ele, notando que nesta dança da política americana só damos passos para trás, iria modificar a frase que disse às alunas e alegar que, com tanta porcaria, ainda vai haver m...da!


Já mais do que uma vez vos disse que não gosto muito de trazer aqui temas de política. Faço-o, agora, em plena consciência, porque acho que é dever de todos nós usarmos os meios ao nosso alcance para gritar, refilar e contestar contra o caminho que esta administração nos quer impingir. Assusta-me, como escrevi há uns meses, o facto de estarmos a perder muitos dos direitos que fomos alcançando. Pela calada, enquanto estamos “distraídos” com estes enormes problemas, eles, o DDT e os seus acólitos, continuam a destruir regalias, a retroceder nos nossos privilégios, a retirar-nos direitos que não são mais do que humanos, a desfazer e ignorar nos cuidados a ter com o ambiente e a natureza e, acima de tudo, a consolidar o poderio do grande capital. Cada vez me convenço mais que, se não nos mantemos alerta e firmes, vamos estar, num futuro próximo, a viver debaixo de um regime ditatorial.
Dei uma volta medonha com estas reflexões. E fi-lo de propósito. Comecei por recordar a simpatia e o sentido de humor do Mestre Alberto, depois o conforto que senti com o apoio da minha família e ainda o amor e alegria que vi nas caras da Vanessa e da Ally, as noivas do casamento da semana passada. Todos estes exemplos de coragem dão-me mais força para enfrentar e combater as manobras divisionistas desta administração. Por isso não me calo. O silêncio não é uma opção.
Se fosse poeta, talvez tentasse inventar uma quadra parecida à do Mestre dançarino:
Meio passo para a frente
Cem passos para trás
Com este DDT
Nunca mais teremos paz!
(Foto do Mestre Alberto Araújo do arquivo do Diário Insular)
Lincoln, Ca. Agosto 19, 2017

Carlos Alberto Alves

Sobre o autor

Carlos Alberto Alves - Jornalista há mais de 50 anos com crónicas e reportagens na comunicação social desportiva e generalista. Redator do Portal Splish Splash e do site oficial da Confraria Cultural Brasil-Portugal. Colabora semanalmente no programa Rádio Face, da Rádio Ratel, dos Açores. Leia Mais sobre o autor...

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