DOIS PASSOS PARA A FRENTE...
Um passo para trás
Que lindo... nariz
Tem este rapaz!
Não era bem assim a cantiga popularmente atribuída
ao simpático Mestre Alberto.
Não tenho coragem de a escrever aqui, não seria
educado nem faria justiça à memória do cozinheiro e dançarino do Corpo Santo,
até porque ele me merecia todo o respeito embora nunca tenhamos trocado uma
fala. Era da idade de meu pai e foi vizinho da família da minha “patroa”.
A fama de Mestre Alberto era grande. Cozinhou para
presidentes, ministros e mais gente importante e fina. E ensinou a dançar
muitas gerações de jovens angrenses, alguns deles nunca admitiram que buscaram
a sua porta para as lições de dança, não fossem cair nas bocas do mundo. Com um
sentido de humor muito fino, Mestre Alberto sabia portar-se no seu lugar e não
admitia brincadeiras ou piropos ofensivos à sua deficiência física ou à sua
divergência sexual, digamos assim. Assumia-a com naturalidade, pese a falta de
educação e de respeito que muitos manifestavam nesse campo.
Costumo contar uma pequena estória passada com o
Mestre Alberto. Ele fora contratado para cozinhar o jantar da festa dos
finalistas da Escola Industrial de Angra. Algumas das alunas ajudaram nas
preparações, a descascar batatas, a lavar louça, etc. Claro que, quando se
juntam raparigas, a risota e as brincadeiras vêm à baila. Mestre Alberto senhor
do seu nariz, já não estava a gostar da folia e admoestou as alunas: “Meninas,
prestem atenção ao que fazem! Com tanta risada, ainda vai haver mijo!”
Eu gostaria de escrever aqui que longe vão os
tempos em que as pessoas eram olhadas com desprezo só por serem “diferentes”.
Mesmo com todos os avanços, com todas as formas mais modernas de aceitação,
ainda temos um caminho muito longo a percorrer. Tanto no campo da
homossexualidade como no dos direitos humanos.
No fim de semana passado fui ao casamento da
cunhada de uma das minhas filhas. Mas, afinal, que tem isso de especial,
perguntarão vocês, casamentos há-os aos montes. Sim, é verdade. Mas este foi
mesmo especial, foi o primeiro casamento gay a que assisti. As duas noivas,
pessoas de quem eu gosto muito, já vivem em comunhão total há uma dúzia de anos
mas agora resolveram aproveitar as mudanças legais e oficializar a sua união.
Reuniram dezenas de amigos e familiares numa festa muito bonita onde era
evidente o amor e respeito que elas recebem de quem as conhece.
Também tive a sorte que as minhas amigas Vanessa e
Ally tiveram agora. Refiro-me ao suporte familiar, mesmo quando as nossas
decisões possam ser contrárias às opiniões das outras pessoas. Quando, em pleno
verão de 1974, poucos meses depois da Revolução do Cravos, eu e a Alice
resolvemos casar, causámos um certo arreganhar das sobrancelhas nalgumas
pessoas porque decidimos que não faríamos uma cerimónia religiosa. Bastava-nos
o apoio e reconhecimento por parte da família e esse foi total e inequívoco.
Nunca esqueço o momento em que, com a sua mão bem firme, com uma caligrafia tão
bonita como nunca vi igual, o meu pai assinou o seu nome como primeira
testemunha no documento que oficializou o nosso casamento perante a Lei. E nem
esqueço o forte e sentido abraço com que nos envolveu, a mim e à minha esposa,
quando nos desejou as melhores venturas para o resto da vida.
...
Fiquei deveras aborrecido com os acontecimentos em
Charlottesville, onde mais uma vez ficou demonstrado que ainda existe muita
miséria intelectual nesta América. Grupos de neonazis e outros quejandos
aproveitam a cumplicidade do trapaceiro e mentiroso presidente para se armarem
em chico-espertos e propagarem as suas nojentas e infames doutrinas. Como pode
essa gentinha pensar que o que precisamos, nesta América e neste Mundo, é
voltar aos tempos da escravatura, aos tempos da aniquilação de raças só porque
“nós é que somos bons e melhores do que ninguém”. Se não concordavam com a
remoção de estátuas de “heróis” dos tempos da escravatura, tinham outras
maneiras de o fazer, não era empunhando símbolos fascistas e marchando armados
até aos dentes que nem piratas, gritando slogans que ferem a mais dura das
sensibilidades. Os grupos que lhes fizeram frente apenas tentaram demonstrar
que não há lugar na nossa sociedade para tanta intolerância. E isso é o que
este desavergonhado DDT não entende, que não pode comparar uns com outros e
afirmar que no meio dos energúmenos havia muita gente decente. Como te podes
considerar uma boa pessoa se marchas e gritas ao lado de nazis e supremacistas
brancos? Tentou ele ser politicamente correto – coisa que, na sua campanha,
desdenhava nos outros – e quer convencer-nos que, no outro lado, também houve
violência e provocação. Não, senhor DDT – nem quero sujar o meu computador a
chamar-te pelo nome - houve apenas resposta e defesa de ideais que são, afinal,
os que ajudaram a criar e a construir esta Nação.
Estivesse Mestre Alberto entre nós, de certeza que
não iria gostar de ver as misérias porque passámos nas últimas semanas. Aposto
mesmo que ele, notando que nesta dança da política americana só damos passos
para trás, iria modificar a frase que disse às alunas e alegar que, com tanta
porcaria, ainda vai haver m...da!
Já mais do que uma vez vos disse que não gosto
muito de trazer aqui temas de política. Faço-o, agora, em plena consciência,
porque acho que é dever de todos nós usarmos os meios ao nosso alcance para
gritar, refilar e contestar contra o caminho que esta administração nos quer
impingir. Assusta-me, como escrevi há uns meses, o facto de estarmos a perder
muitos dos direitos que fomos alcançando. Pela calada, enquanto estamos
“distraídos” com estes enormes problemas, eles, o DDT e os seus acólitos,
continuam a destruir regalias, a retroceder nos nossos privilégios, a
retirar-nos direitos que não são mais do que humanos, a desfazer e ignorar nos
cuidados a ter com o ambiente e a natureza e, acima de tudo, a consolidar o
poderio do grande capital. Cada vez me convenço mais que, se não nos mantemos
alerta e firmes, vamos estar, num futuro próximo, a viver debaixo de um regime
ditatorial.
Dei uma volta medonha com estas reflexões. E fi-lo
de propósito. Comecei por recordar a simpatia e o sentido de humor do Mestre
Alberto, depois o conforto que senti com o apoio da minha família e ainda o amor
e alegria que vi nas caras da Vanessa e da Ally, as noivas do casamento da
semana passada. Todos estes exemplos de coragem dão-me mais força para
enfrentar e combater as manobras divisionistas desta administração. Por isso
não me calo. O silêncio não é uma opção.
Se fosse poeta, talvez tentasse inventar uma quadra
parecida à do Mestre dançarino:
Meio passo para a frente
Cem passos para trás
Com este DDT
Nunca mais teremos paz!
(Foto do Mestre Alberto Araújo do arquivo do Diário
Insular)
Lincoln, Ca. Agosto 19, 2017
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