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quarta-feira, 25 de outubro de 2017

De João Bendito - Califórnia



CONVERSAS COM SABOR A DOCE DE GOIABA
                                                  
 Foi já há um ano que vos escrevi, aqui nesta página de “Crónicas de Hoje e de Sempre”, uma estória em que falava de doce de tomates de capucho, a especialidade que os filhos de um velho (!) amigo produzem comercialmente ali para os lados de Santarém.


Nessa altura o meu amigo J.M. até me mandou, por correio, uma amostra dos deliciosos doces. Consolei-me com eles mas acabaram depressa demais. Nessa mesma crónica eu explicava que não gosto de algumas frutas mas aprecio os doces e compotas delas feito. Esquisitices, o que é que se há-de fazer? Mencionei, no mesmo artigo, o caso das caiotas e até dos tomates de capucho. Agora tenho mais uma espécie para acrescentar à lista: as goiabas. Não é fruto que me caia muito no goto mas, believe me – como diz o nosso presidente DDT – fiquei apaixonado e convertido ao doce de goiaba.
Aconteceu na minha recente visita ao sul da Califórnia, mais precisamente à cidade de Artesia. Fui recebido como um rei pelo meus amigos Osvaldo e Aurélia Palhinha, que não se pouparam a esforços para me proporcionarem uma agradável estadia. Como bons portugueses que se prezam de ser, os meus anfitriões fizeram jus àquilo que eu já sabia: saber receber é uma arte e nesse aspecto eles ganham os prémios todos.
Passámos horas esquecidas à mesa. Fizeram-nos companhia dois casais de tios da Aurélia, pessoas que eu não conhecia mas de quem me tornei amigo de imediato. Deslocaram-se de San Jose, numa viagem de carro de sete horas que poderia ser um desafio para qualquer octogenário mas não para o Sr. J. Toste, que faz aquilo com uma perna às costas (salvo seja!), restos da sua experiência de uma vida inteira como camionista a transportar mercadorias por toda a Califórnia.

                                                       
Eu poderia dizer que a Aurélia se esmerou para nos apresentar ementas de alta qualidade mas isso também não reflete bem a realidade. A verdade é que, na cozinha, tudo lhe sai com uma facilidade assombrosa. O peixe de cebolada estava simplesmente divinal, assim como os bifinhos bem à nossa moda. Mas o que me deixou ainda mais próximo das portas do céu foi o doce de goiaba.
Vermelhinho, com a consistência certa e sem excesso de açúcar, foi de verdade uma surpresa para mim. Ainda por cima a Aurélia fez acompanhar este pitéu com um maravilhoso queijo fresco de se lhe tirar o chapéu, uma associação de gostos e paladares mesmo próprios para desentaramelar as línguas.
Quem me conhece sabe que eu, num ajuntamento social, passo mais tempo a ouvir do que a falar. Então se estou na presença de gente discretinha, eu aproveito para aprender e para assimilhar estórias e, nesse sentido, os irmãos Luís e José Toste mostraram ser um poço sem fundo de recordações e de conhecimentos da nossa terra. As suas simpáticas esposas, com o seu delicado sentido de humor, não lhes ficavam atrás. Eles talvez nem imaginam o quanto me ensinaram e disso fico-lhes reconhecido para sempre. As senhoras até me disseram que a minha tia-avó Conceição “Bailhoa” é que lhes arranjava o cabelo quando eram meninas e moças, na sua casa em São Sebastião.
Contudo, foi com a antiga vizinha Aurélia que tive as conversas mais prolongadas. Percorremos de forma minuciosa a nossa inesquecível Rua da Miragaia, em Angra, começámos no canto do Seminário e subimos, casa a casa, família a família, pelo menos até ao Chafariz Velho e à entrada da Rua da Pereira. Embalados pelo doce de goiaba barrado em fatias de pão fresco, descobrimos que as nossas recordações eram muito semelhantes, pese a (pequena) diferença de idade que nos separa. Falámos de pessoas que respeitávamos muito, de senhoras que nos mereciam consideração, dos mestres sapateiros, estofadores e barbeiros e dos amigos de escola e de brincadeiras; da casa da senhora onde ela ia aprender a fazer frioleira e da outra, a da Nini, onde eu e os outros rapazes íamos pedir amêndoas e confeitos; dos que já morreram... o Talhinha, a Sra. Urbina e tantos outros. E até recordámos os teatrinhos que o Paulo Jorge Lestinho organizava no saguão da sua residência, com um palco que as irmãs o ajudavam a montar, coberto com cortinas velhas e onde eu e o J.M. – sim, esse mesmo, o do doce de tomate de capucho – éramos os cães amestrados que ladravam a toque de um pequeno chicote. O Paulo Jorge, homem de negócios em crescimento, cobrava meio-escudo aos outros rapazes da vizinhança para assistirem ao espetáculo. Foi a minha primeira e última experiência como ator de teatro. Ladrava tanto que até ficava rouco.
Claro que em situações destas também surgem umas pontinhas de lembranças mais atrevidas, digamos assim. Sem malícia ou maledicência, também despendemos uns minutos a badalar do senhor que era muito mal-encarado e não cumprimentava ninguém ou na jovem senhora que, quando a situação se proporcionava, abria a porta da sua casa ao famoso futebolista que, pacientemente, esperava no canto da rua a oportunidade de ir marcar uns golos ilegais. E tantas outras estórias que ficaram por contar, à espera de um novo encontro com os meus amigos.
A minha anfitriã teve a amabilidade de me oferecer um frasco de doce de goiaba para trazer comigo. Todos os dias lhe tiro uma colherinha, das de chá, para fazer render. E, sempre que o faço, acabo por percorrer a Miragaia de alto a baixo, como que se não houvesse outra rua no Mundo igual àquela. Era o nosso Mundo, onde crescemos e nos fizemos gente.
Resta acrescentar que a Aurélia também tinha, à sua mesa, um maravilhoso doce de abóbora. Ainda pensei em perguntar mas não quis ser impertinente, será que há algum doce ou compota que ela não faça?
Só tive pena de não ter provado um prato que, vim a saber, a Aurélia é exímia: os ovos com tomates. Galinhas eles não têm em casa mas tomates então era uma abundância, da bonita plantação que o Osvaldo tem no quintal.

Ficará para a próxima, não vai faltar ocasião.
Carlos Alberto Alves

Sobre o autor

Carlos Alberto Alves - Jornalista há mais de 50 anos com crónicas e reportagens na comunicação social desportiva e generalista. Redator do Portal Splish Splash e do site oficial da Confraria Cultural Brasil-Portugal. Colabora semanalmente no programa Rádio Face, da Rádio Ratel, dos Açores. Leia Mais sobre o autor...

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