CONVERSAS COM SABOR A DOCE DE GOIABA
Nessa altura o meu amigo J.M. até me mandou, por
correio, uma amostra dos deliciosos doces. Consolei-me com eles mas acabaram
depressa demais. Nessa mesma crónica eu explicava que não gosto de algumas
frutas mas aprecio os doces e compotas delas feito. Esquisitices, o que é que
se há-de fazer? Mencionei, no mesmo artigo, o caso das caiotas e até dos
tomates de capucho. Agora tenho mais uma espécie para acrescentar à lista: as
goiabas. Não é fruto que me caia muito no goto mas, believe me – como
diz o nosso presidente DDT – fiquei apaixonado e convertido ao doce de goiaba.
Aconteceu na minha recente visita ao sul da
Califórnia, mais precisamente à cidade de Artesia. Fui recebido como um rei
pelo meus amigos Osvaldo e Aurélia Palhinha, que não se pouparam a esforços
para me proporcionarem uma agradável estadia. Como bons portugueses que se
prezam de ser, os meus anfitriões fizeram jus àquilo que eu já sabia: saber
receber é uma arte e nesse aspecto eles ganham os prémios todos.
Passámos horas esquecidas à mesa. Fizeram-nos
companhia dois casais de tios da Aurélia, pessoas que eu não conhecia mas de
quem me tornei amigo de imediato. Deslocaram-se de San Jose, numa viagem de
carro de sete horas que poderia ser um desafio para qualquer octogenário mas
não para o Sr. J. Toste, que faz aquilo com uma perna às costas (salvo seja!),
restos da sua experiência de uma vida inteira como camionista a transportar
mercadorias por toda a Califórnia.
Eu poderia dizer que a Aurélia se esmerou para nos
apresentar ementas de alta qualidade mas isso também não reflete bem a
realidade. A verdade é que, na cozinha, tudo lhe sai com uma facilidade
assombrosa. O peixe de cebolada estava simplesmente divinal, assim como os
bifinhos bem à nossa moda. Mas o que me deixou ainda mais próximo das portas do
céu foi o doce de goiaba.
Vermelhinho, com a consistência certa e sem excesso
de açúcar, foi de verdade uma surpresa para mim. Ainda por cima a Aurélia fez
acompanhar este pitéu com um maravilhoso queijo fresco de se lhe tirar o
chapéu, uma associação de gostos e paladares mesmo próprios para desentaramelar
as línguas.
Quem me conhece sabe que eu, num ajuntamento
social, passo mais tempo a ouvir do que a falar. Então se estou na presença de
gente discretinha, eu aproveito para aprender e para assimilhar estórias e,
nesse sentido, os irmãos Luís e José Toste mostraram ser um poço sem fundo de
recordações e de conhecimentos da nossa terra. As suas simpáticas esposas, com
o seu delicado sentido de humor, não lhes ficavam atrás. Eles talvez nem
imaginam o quanto me ensinaram e disso fico-lhes reconhecido para sempre. As
senhoras até me disseram que a minha tia-avó Conceição “Bailhoa” é que lhes
arranjava o cabelo quando eram meninas e moças, na sua casa em São Sebastião.
Contudo, foi com a antiga vizinha Aurélia que tive
as conversas mais prolongadas. Percorremos de forma minuciosa a nossa
inesquecível Rua da Miragaia, em Angra, começámos no canto do Seminário e
subimos, casa a casa, família a família, pelo menos até ao Chafariz Velho e à
entrada da Rua da Pereira. Embalados pelo doce de goiaba barrado em fatias de
pão fresco, descobrimos que as nossas recordações eram muito semelhantes, pese
a (pequena) diferença de idade que nos separa. Falámos de pessoas que
respeitávamos muito, de senhoras que nos mereciam consideração, dos mestres
sapateiros, estofadores e barbeiros e dos amigos de escola e de brincadeiras;
da casa da senhora onde ela ia aprender a fazer frioleira e da outra, a da
Nini, onde eu e os outros rapazes íamos pedir amêndoas e confeitos; dos que já
morreram... o Talhinha, a Sra. Urbina e tantos outros. E até recordámos os
teatrinhos que o Paulo Jorge Lestinho organizava no saguão da sua residência,
com um palco que as irmãs o ajudavam a montar, coberto com cortinas velhas e
onde eu e o J.M. – sim, esse mesmo, o do doce de tomate de capucho – éramos os
cães amestrados que ladravam a toque de um pequeno chicote. O Paulo Jorge,
homem de negócios em crescimento, cobrava meio-escudo aos outros rapazes da
vizinhança para assistirem ao espetáculo. Foi a minha primeira e última
experiência como ator de teatro. Ladrava tanto que até ficava rouco.
Claro que em situações destas também surgem umas
pontinhas de lembranças mais atrevidas, digamos assim. Sem malícia ou
maledicência, também despendemos uns minutos a badalar do senhor que era muito
mal-encarado e não cumprimentava ninguém ou na jovem senhora que, quando a
situação se proporcionava, abria a porta da sua casa ao famoso futebolista que,
pacientemente, esperava no canto da rua a oportunidade de ir marcar uns golos
ilegais. E tantas outras estórias que ficaram por contar, à espera de um novo
encontro com os meus amigos.
A minha anfitriã teve a amabilidade de me oferecer
um frasco de doce de goiaba para trazer comigo. Todos os dias lhe tiro uma
colherinha, das de chá, para fazer render. E, sempre que o faço, acabo por
percorrer a Miragaia de alto a baixo, como que se não houvesse outra rua no
Mundo igual àquela. Era o nosso Mundo, onde crescemos e nos fizemos gente.
Resta acrescentar que a Aurélia também tinha, à sua
mesa, um maravilhoso doce de abóbora. Ainda pensei em perguntar mas não quis
ser impertinente, será que há algum doce ou compota que ela não faça?
Só tive pena de não ter provado um prato que, vim a
saber, a Aurélia é exímia: os ovos com tomates. Galinhas eles não têm em casa
mas tomates então era uma abundância, da bonita plantação que o Osvaldo tem no
quintal.
Ficará para a próxima, não vai faltar ocasião.
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