AS MÓNICAS
Há situações, lugares ou associações que marcam a vida
das pessoas e das famílias.
A minha família angrense também não foge à regra.
Ficámos marcados pelo lugar onde nascemos e vivemos grande parte da nossa vida,
a Rua da Miragaia. Aí criámos amigos para sempre, fomos acarinhados por
vizinhos que nunca mais esqueceremos e palmilhámos aquela ladeira vezes sem
conta, ao ponto de conhecermos cada uma das pedrinhas da calçada.
E lá está ainda, imponente e altivo, o edifício das
Mónicas. Ergueu-se já quase há três séculos, a partir de 1747, por ordem de D.
Mónica Maria de Andrade, que ali se recolheu em voto religioso e deixou em
testamento a sua posse ao que passou a ser o Recolhimento de Jesus Maria José,
com o intuito de ser um lar de apoio e residência a viúvas ou senhoras que
necessitassem de assistência.
A relação da nossa família com esta instituição vem de
muito longe. Já antes de 1950 que o meu avô paterno, o Ti José Bailhão,
arrendava os quintais das traseiras do edifício onde cultivava todo o género de
legumes e outros produtos que eram vendidos na Loja do meu pai. Mas fica a
cargo do meu irmão Jorge Bendito contar-vos do nosso relacionamento com aqueles
cerrados. Em anexo deixo-vos o texto que ele escreveu e que foi publicado no
livro “A Loja do Ti Bailhão”.
Aqui, nestas parcas linhas, gostaria só de lembrar e
reconhecer o trabalho de todos aqueles que, ao longo destes quase três séculos,
mantiveram aquela casa em funcionamento e proporcionaram alegrias e acolhimento
nos últimos anos de vida a muitas senhoras. E saudar, de um modo especial, a
atual direção das Mónicas que, em boa hora mas com muito sacrifício, levaram a
cabo as enormes obras de beneficiação do edifício, que vêm proporcionar uma
melhor qualidade de vida às 54 senhoras que ali vivem, para além de melhores
condições de trabalho para os dedicados profissionais que lá labutam.
É certo que o apoio atribuído pelo Governo Regional
tem sido fundamental mas nada se teria realizado se não fosse pelo esforço e a
carolice deste grupo de pessoas que, com supremo altruísmo, meteram mãos à
obra.
Demonstrando que a relação da nossa família com as
Mónicas ainda perdura, lá está a presença do meu irmão José Guilherme Bendito,
o atual presidente da Mesa da Direção, a quem deixo um abraço do coração.
Sei que, tal como eu estou, o meu avô e o meu pai
ficariam orgulhosos se pudessem ver o trabalho que ele e os seus colegas
diretores têm feito.
Bem Hajam!
Lincoln, Ca. 4 de junho, 2017
João Bendito
2 - Os Cerrados das Mónicas
Jorge Bendito in “A Loja do Ti Bailhão”
No cimo da Rua da Miragaia existe
um edifício de construção secular de relativa dimensão arquitectónica e que
ostenta na sua fachada principal uma pequena capela.
Serve esse edifício de sede à
organização “ Recolhimento Jesus Maria José” instituição privada de apoio
social sendo a sua função principal servir como lar da terceira idade e
destinado exclusivamente a senhoras. Nos meus tempos de infância assustava-me
um pouco se, por algum motivo, acompanhava minha mãe quando ela lá se deslocava
normalmente para visitar alguma amiga ali residente. Os corredores eram
enormes e escuros, as portas rangiam e os quartos destinados ao alojamento eram
bastante pequenos, atulhados como estavam com os pertences das residentes. A
cozinha era enorme com balcões em pedra onde normalmente estavam pousadas
enormes panelas bem como pilas de pratos. No centro dessa cozinha havia uma
enorme mesa de madeira que parecia já ter conhecido melhores dias. Quer a
cozinha quer o resto do edifício tinha um cheiro intenso e pouco agradável, que
se entranhava nas narinas e nas roupas e que permanecia mesmo depois de
abandonarmos o edifício. Para mim ir àquele espaço era parecido com ir
participar num filme de terror.
Felizmente essa situação
alterou-se. Hoje é um lar moderno, totalmente equipado com o material mais
recente que existe para esse tipo de instituições. Grande parte dessa
transformação se deveu ao empenho do meu irmão José Guilherme Bendito que desde
há alguns anos preside à mesa administrativa daquela Instituição.
O quintal desse edifício era
composto por um pátio com três cerrados, em forma de socalco e que eram de razoáveis
dimensões. Esses cerrados estavam alugados a meu Pai e serviam de hortas, quer
para a criação de plantios para venda na loja, quer na produção de legumes para
uso doméstico. No primeiro cerrado existia também um enorme tanque que recebia
água das antigas arquinhas, sistema rudimentar e eficiente de captação das
águas pluviais e de pequenas ribeiras, água essa que era usada na rega dos
terrenos. Tinha também dois currais onde se criavam porcos e galinhas e um barracão para arrumo das ferramentas.
Na minha meninice e
principalmente no verão aquele espaço era uma tentação para as minhas
brincadeiras. Ele era um tal trepar à burra de milho, brincar com barcos e
algumas vezes mergulhar no tanque, apanhar grilos, gafanhotos e borboletas.
Caçar pássaros com um sútil, foi durante algum tempo um dos meus passatempos
preferidos, atividade que foi posteriormente substituída por caça com arma de
chumbos. Nesses cerrados havia também vimeiros, que me permitiam ter sempre um
arco e um stock elevado de flechas. Nessas minhas brincadeiras era muitas vezes
acompanhado por amigos que moravam na minha rua: o Macôco, o Emanuel Sapateiro,
o Victor Medina e o Jorge Martins.
O Ti Manuel de S. Miguel, que era quem tomava conta dos
cerrados, passava a vida a ralhar connosco, para não pisarmos os canteiros e
não estragarmos o que estava semeado, ameaçando-me constantemente que iria
fazer queixa ao meu Pai.
Era graças ao trabalho do Ti
Manuel de S. Miguel que este espaço estava devidamente cultivado, o que
permitia um abastecimento de todo o tipo produtos na nossa casa: batatas,
ervilhas favas, cenouras, tomates, milho doce, melancias, melões, etc. Recordo com
nostalgia os dias maravilhosos da apanha e posteriormente as tardes ou serões,
nas lojas por baixo da nossa casa, a descascar favas e ervilhas bem como quando
era a altura de fazer a tomatada, o prazer que nos dava o cortar, esmigalhar e
coar os tomates, produzindo uma cauda que a minha Mãe depois punha a escorrer,
dentro de sacas de pano, produzindo assim uma massa que depois de salgada, era
guardada em frascos de vidro, para ser usada como tempero culinário.
Quando comecei a ajudar o meu pai
na Loja, a minha relação amistosa com aquele espaço foi-se alterando.
Primeiro por causa dos plantios.
Naqueles cerrados eram criados
plantios para venda na Loja, principalmente de couvinha, repolhos e alfaces.
Todos os dias o Tio Manuel de S. Miguel preparava molhes daqueles plantios, uns
de 25 e outros de 50 pés, que eram transportados, logo pela manhã, para venda
na Loja. O pior era quando a meio do dia se esgotava o stock e apareciam
clientes para mais plantios. Pessoas das freguesias, para não terem que voltar
à cidade simplesmente para levar plantios ,lá solicitavam ao meu pai que lhes
facilitasse o fornecimento. Meu pai, para não perder nem o cliente nem a
oportunidade de venda, lá determinava: Jorge vai às Mónicas e traz mais tantos
molhos de plantios. E lá ia eu, trepando a Miragaia, solicitar a respectiva
apanha ao Tio Manuel, tendo que aguardar que ele preparasse os molhos para eu
os transportar para a Loja. O pior era quando voltava à Loja com os molhos dos
plantios e já outras encomendas tinham sido feitas e sempre com carácter de
urgência. Lá tinha eu que voltar eu a palmilhar a Miragaia para satisfazer
aquele pedido.
Depois, pela apanha da Açaflor..
Nos nossos cerados das Mónicas
era usual o plantio dessa espécie. Na altura da sua maturação era necessário
proceder à sua apanha. Esta planta produz os estigmas de cor alaranjada
duas vezes por dia. A sua colheita deve ser efectuada logo pela manhã, quando a
planta se abre com os primeiros raios de Sol e ao entardecer, antes da planta
se contrair com o chegar da noite. A apanha da manhã era efectuada pelo ti
Manuel de S. Miguel. Porém a apanha da tarde e dado que à hora a que a mesma
tinha que ser feita o trabalhador já terminara o seu dia de trabalho, era eu e
minhas irmãs que desempenhávamos tal tarefa. Munidos de pequenos cestos de asa lá íamos apanhar a
Açaflor. O pior desta planta é que os filamentos
se dão no interior do bolbo, bolbo esse bastante pontiagudo e agressivo o que
nos dava cabo da cabeça dos dedos. O que poderia ser um trabalho agradável tornava-se
penoso pelo constante picar e magoar dos dedos. Para além disso os filamentos
recolhidos eram bastante pequenos, finos e leves
o que fazia com que tivéssemos a sensação de que o montante recolhido e o tempo
despendido nos parecesse tempo passado em vão.
Posteriormente o Açaflor era transportado para casa onde a Mãe o punha a secar
ao sol em tabuleiros de madeira, para depois ir para a Loja para ser vendido.
Recordo que pelo seu leve peso o preço de venda do Açaflor era bastante levado.
Depois do sismo de 80 o
Recolhimento Jesus Maria José reclamou para si aqueles cerrados tendo-os
integrado na ampliação das instalações daquele lar e transformando os cerrados
em jardim e espaço de lazer para as utentes da Instituição.
A minha última visita àquele espaço
foi num jantar de encerramento das festas Sanjoaninas, das quais fiz parte da
organização. A comissão ali reuniu um grupo de convidados, no último dia das
festas, para de lá
se presenciar, dado a sua excelente localização, o fogo de artifício lançado
sobre a Baia de Angra. Fiquei surpreso e bastante admirado pelos excelentes
jardins que lá fizeram e, para tristeza minha, não encontrei nada do que
existia dos meus tempos de infância.
Pala meia noite e quando todos os
elementos da comissão se extasiavam com a vista do fogo e davam largas à sua
alegra pelo sentimento de dever cumprido tal foi o sucesso das festas , eu
peguei numa bebida e isolei-me do grupo. Desloquei-me para a zona onde
antigamente existiam os vimeiros que em tempos foram os abastecedores
dos meus arcos de flecha, aproveitando assim, e
em silencio, para me
despedir dos cerrados das Mónicas e das memórias
da minha infância.
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