A Racionalidade Irracional
Eu digo muitas vezes que o instinto serve melhor os animais do
que a razão a nossa espécie. E o instinto serve melhor os animais porque é
conservador, defende a vida. Se um animal come outro, come-o porque tem de
comer, porque tem de viver; mas quando assistimos a cenas de lutas terríveis
entre animais, o leão que persegue a gazela e que a morde e que a mata e que a
devora, parece que o nosso coração sensível dirá «que coisa tão cruel». Não:
quem se comporta com crueldade é o homem, não é o animal, aquilo não é
crueldade; o animal não tortura, é o homem que tortura. Então o que eu critico
é o comportamento do ser humano, um ser dotado de razão, razão disciplinadora,
organizadora, mantenedora da vida, que deveria sê-lo e que não o é; o que eu
critico é a facilidade com que o ser humano se corrompe, com que se torna
maligno.
Aquela ideia que temos da esperança nas crianças, nos meninos e nas meninas
pequenas, a ideia de que são seres aparentemente maravilhosos, de olhares
puros, relativamente a essa ideia eu digo: pois sim, é tudo muito bonito, são
de facto muito simpáticos, são adoráveis, mas deixemos que cresçam para
sabermos quem realmente são. E quando crescem, sabemos que infelizmente muitas
dessas inocentes crianças vão modificar-se. E por culpa de quê? É a sociedade a
única responsável? Há questões de ordem hereditária? O que é que se passa dentro
da cabeça das pessoas para serem uma coisa e passarem a ser outra?
Uma sociedade que instituiu, como valores a perseguir, esses que nós sabemos, o
lucro, o êxito, o triunfo sobre o outro e todas estas coisas, essa sociedade
coloca as pessoas numa situação em que acabam por pensar (se é que o dizem e
não se limitam a agir) que todos os meios são bons para se alcançar aquilo que
se quer.
Falámos muito ao longo destes últimos anos (e felizmente continuamos a falar)
dos direitos humanos; simplesmente deixámos de falar de uma coisa muito
simples, que são os deveres humanos, que são sempre deveres em relação aos
outros, sobretudo. E é essa indiferença em relação ao outro, essa espécie de
desprezo do outro, que eu me pergunto se tem algum sentido numa situação ou no
quadro de existência de uma espécie que se diz racional. Isso, de facto, não
posso entender, é uma das minhas grandes angústias.
José Saramago, in 'Diálogos com José Saramago'
Sem comentários:
Enviar um comentário