O
fascínio da Europa e a paixão pelo Brasil
A. V.
Há outras cidades que exerceram grande influência
na sua formaçãoo intelectual e no seu destino universitário - Montpellier e
Bruxelas. A França e a Bélgica conduziram Nemésio à descoberta do mundo
cultural e científico. Da poesia de Valéry, de Claudel e Apollinaire, da
relação pessoal com Valey Larbaud, Jules Supervielle e Jean Cassou. Beneficiou
dos conselhos de Marcel Batallion, Robert Ricard e da "vigilância paternal
de George le Gentil, patriarca do lusismo em França", com "um
discreto saber de abelha carregada em suas flores".
Tudo isto concorreu para uma experiência cosmopolita e para "ampliar a
intimidade com uma literatura de finesse que seria chamado a ensinar".
Alastrava a Guerra de Espanha e vislumbrava-se no horizonte a calamidade de uma
conflagração muito maior. "A beira do barril de pólvora", ponderava
Nemésio, "mas com alma para a esperança", aqueles mestres e, ainda,
Julles Sion deram-lhe "no dia-a-dia a medida do que a gente é ao pé dos
que suaram, como Sanches, para um quod nihil scitur, autenticamente
conclusivo".
Uma carta de 16 de Fevereiro de 1935 para Afonso Lopes Vieira, que revelei, em
primeira mão, numa comunicação apresentada na classe de Letras da Academia das
Ciências, denuncia o seu fascínio perante a mensagem espiritual do franciscanismo.
A questão religiosa, que se torna pública a partir dos anos 50, ainda se
evidencia quando trabalha em Montpellier. Data de então a biografia de Isabel
de Aragão, Rainha Santa (1936), onde é exaltada a acção primordial da mulher de
D. Dinis no apoio à ordem franciscana, designadamente à comunidade de Alenquer,
que procedeu à restauração do culto do Espírito Santo.
Mas será em 1938/39, quando reside na Bélgica, como bolseiro do Instituto de
Alta Cultura, que se começa a operar a luta entre o homem humano e o homem
metafísico, conforme já assinalei com base noutra correspondência para Afonso
Lopes Vieira.
Esteve no Brasil, entre 1952 e 1972, largas temporadas. Para Nemésio o Brasil
era aventura, descoberta e reencontro: é o "violão de morro", com
xácara, com samba, com farsa dramática, negros do cais Mauá, balada da Rua do
Catete e um "inferninho" de Copacabana. Mas, também, são os romances
da Baía, a barca Flor das Marés, os verídicos e espantosos sucessos
do lugre Flor d'Angra, da praça do mesmo nome, na ilha Terceira,
"pátria do autor", com vinte marçanos do Pará.
A influência dos Açores e dos açorianos é enorme no Brasil. Francisco do Canto,
natural de Angra, filho de Pedro Anes do Canto, provedor das Armadas nos
Açores, foi incorporado, logo no princípio do século XVI, na frota de Tomé de
Sousa e com ele colaborou em numerosas tarefas decisivas para o presente e
futuro do Brasil. A tal ponto que Tomé de Sousa (como aludiu na Fenix
Angrense Manuel Luís Maldonado) não hesitou em declarar que se deveu a
Francisco do Canto a própria fundação da cidade da Baía.
São inúmeros os contributos dos açorianos no Brasil, na defesa e salvaguarda
das fronteiras, na libertação do domínio holandês, no sistema de povoamento, na
génese e evolução da sociedade brasileira. Vitorino Nemésio relatou muito do
que fizeram em dois livros: Segredo de Ouro Preto e Outros Caminhos e Caatinga
e Terra Caída. Pormenoriza a intervenção dos açorianos na rota dos
Bandeirantes, no desenvolvimento do litoral e interior de Santa Catarina, onde
perdura um extenso legado nas manifestações de cultura popular, na gastronomia
e na arquitectura, desde Itapoã, no Norte, até Passo de Torres, no Sul.
As referências açorianas não se limitam a Santa Catarina, Rio Grande do Sul e
Maranhão, Ceará e Amazónia. Distribuíram-se através de todos os outros estados.
Milhares e milhares de açorianos anónimos e seus descendentes, ao longo de
quase cinco séculos, nos mais diferentes sectores de actividade, contribuíram
para a grandeza e prosperidade do Brasil.
E Vitorino Nemésio na sua itinerância de terra em terra comunicou-nos, em
poemas, crónicas e estudos de investigação histórica, um testemunho de
conhecimento directo que nos leva a recordar a nobre, ínclita e desventurada
figura de D. Pedro, "o infante das sete partidas", quando afirmava
com um saber de experiência feito e na saborosa língua do século XV: "É
viajando que mais se aprende dos costumes e índole dos homens do que pela
leitura de grossos volumes."
DN
17-12-2001
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