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sexta-feira, 26 de janeiro de 2018

Os "Monstros Sagrados" jamais serão esquecidos - Vitorino Nemésio



Vitorino Nemésio: o professor, o comunicador e o mestre


ANTÓNIO REGO CHAVES


Entalado entre dois aplicados assistentes, o quase tímido - mas não modesto, isso nunca - catedrático Vitorino Nemésio foi conduzido, como se estivesse sob escolta policial, ao Anfiteatro I da Faculdade de Letras de Lisboa. E forçado a debitar, em três duríssimas etapas, algo sobre Alexandre Herculano, acerca do qual sabia tudo, mesmo os hábitos quotidianos, mesmo a cor das vestes, mesmo as mais recônditas idiossincrasias. Descrevia com inacreditável minúcia o seu biografado, como se tivesse vivido no seu tempo, conversado com ele, conhecido os mesmos homens e os mesmos problemas individuais, sociais, políticos.

Quê, era assim nos terríveis tempos de Salazar, os professores levados de rastos para as aulas e forçados a ensinar, como delinquentes? Nada disso. É que Vitorino Nemésio possuía o condão de acabar as suas lições como as tinha começado: sem ensinar nada susceptível de ser incluído nas perguntas a que teríamos de nos submeter em exame final. Por isso tinha sido obrigado a caminhar, como para o patíbulo, pelos seus inquisitoriais "ajudantes", para o Anfiteatro I, a fim de dar "a matéria", custasse o que custasse. E deu mesmo, apesar de todas as tentativas de fuga durante o percurso oral. Aí, ao mínimo desvio para temas menos "examináveis", os asssistentes tocavam-lhe no braço mais ao seu alcance, pigarreavam, murmuravam-lhe ao ouvido qualquer coisa que não podíamos escutar. E ele lá continuava, pela mão de Alexandre Herculano, a caminho do fim, Vale de Lobos. Contrariado, o mais ínvio possível, entre deslumbrantes etimologias que faziam as nossas delícias e iam desesperando, cada vez mais, os seus implacáveis vigilantes.

Era, de facto, uma presença encantadora. Um "comunicador nato", dir-se-ia mais tarde, quando começou a aparecer na televisão, tornando-se conhecido em todo o "país real". Foi tudo isso, e até talvez mais, para muitos de nós, seus alunos. Fascinante homem de cultura, monologador ímpar, mágico da palavra obscura. Mestre, mesmo mestre? Mestre no sentido pleno em que o foi um Lindley Cintra? Ai, isso não. O exemplo verticalidade e da inteireza do carácter - não será essa a mais inequívoca prova de fogo para um homem de bem? -, esse Vitorino Nemésio não o conseguiu transmitir aos seus alunos em 1962, durante a "crise académica". E foi triste, porque o estimávamos, até então, quase como se fosse um novo Sócrates, alheado de toda a mesquinhez que infectava o nosso sufocante mundo universitário. O sábio deu lugar ao vulgar funcionário público e, tal como outros docentes, depois de uma ténue solidariedade, refugiou-se na sua aveludada torre de marfim, no seu "estatuto de intelectual" - e abandonou-nos às feras, tanto quanto sei em nome da comodidade própria e da família, que correria indiscutíveis riscos económicos caso ele fosse impedido de ensinar.

Reconheço que é sempre difícil julgar alguém com justiça; mas, de bradar aos Céus, seria confundir um cidadão com um súbdito. Lindley Cintra foi um cidadão, corajosamente ao lado dos seus alunos, em pleno salazarismo, no ano de 1962. Vitorino Nemésio, não.
Carlos Alberto Alves

Sobre o autor

Carlos Alberto Alves - Jornalista há mais de 50 anos com crónicas e reportagens na comunicação social desportiva e generalista. Redator do Portal Splish Splash e do site oficial da Confraria Cultural Brasil-Portugal. Colabora semanalmente no programa Rádio Face, da Rádio Ratel, dos Açores. Leia Mais sobre o autor...

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