Vitorino
Nemésio: o professor, o comunicador e o mestre
ANTÓNIO REGO
CHAVES
Entalado entre dois aplicados assistentes, o quase tímido - mas não modesto,
isso nunca - catedrático Vitorino Nemésio foi conduzido, como se estivesse sob
escolta policial, ao Anfiteatro I da Faculdade de Letras de Lisboa. E forçado a
debitar, em três duríssimas etapas, algo sobre Alexandre Herculano, acerca do
qual sabia tudo, mesmo os hábitos quotidianos, mesmo a cor das vestes, mesmo as
mais recônditas idiossincrasias. Descrevia com inacreditável minúcia o seu
biografado, como se tivesse vivido no seu tempo, conversado com ele, conhecido
os mesmos homens e os mesmos problemas individuais, sociais, políticos.
Quê, era assim nos terríveis tempos de Salazar, os professores levados de
rastos para as aulas e forçados a ensinar, como delinquentes? Nada disso. É que
Vitorino Nemésio possuía o condão de acabar as suas lições como as tinha começado:
sem ensinar nada susceptível de ser incluído nas perguntas a que teríamos de
nos submeter em exame final. Por isso tinha sido obrigado a caminhar, como para
o patíbulo, pelos seus inquisitoriais "ajudantes", para o Anfiteatro
I, a fim de dar "a matéria", custasse o que custasse. E deu mesmo,
apesar de todas as tentativas de fuga durante o percurso oral. Aí, ao mínimo
desvio para temas menos "examináveis", os asssistentes tocavam-lhe no
braço mais ao seu alcance, pigarreavam, murmuravam-lhe ao ouvido qualquer coisa
que não podíamos escutar. E ele lá continuava, pela mão de Alexandre Herculano,
a caminho do fim, Vale de Lobos. Contrariado, o mais ínvio possível, entre
deslumbrantes etimologias que faziam as nossas delícias e iam desesperando,
cada vez mais, os seus implacáveis vigilantes.
Era, de facto, uma presença encantadora. Um "comunicador nato",
dir-se-ia mais tarde, quando começou a aparecer na televisão, tornando-se
conhecido em todo o "país real". Foi tudo isso, e até talvez mais,
para muitos de nós, seus alunos. Fascinante homem de cultura, monologador
ímpar, mágico da palavra obscura. Mestre, mesmo mestre? Mestre no sentido pleno
em que o foi um Lindley Cintra? Ai, isso não. O exemplo verticalidade e da
inteireza do carácter - não será essa a mais inequívoca prova de fogo para um
homem de bem? -, esse Vitorino Nemésio não o conseguiu transmitir aos seus
alunos em 1962, durante a "crise académica". E foi triste, porque o
estimávamos, até então, quase como se fosse um novo Sócrates, alheado de toda a
mesquinhez que infectava o nosso sufocante mundo universitário. O sábio deu
lugar ao vulgar funcionário público e, tal como outros docentes, depois de uma
ténue solidariedade, refugiou-se na sua aveludada torre de marfim, no seu
"estatuto de intelectual" - e abandonou-nos às feras, tanto quanto
sei em nome da comodidade própria e da família, que correria indiscutíveis
riscos económicos caso ele fosse impedido de ensinar.
Reconheço que é sempre difícil julgar alguém com justiça; mas, de bradar aos Céus,
seria confundir um cidadão com um súbdito. Lindley Cintra foi um cidadão,
corajosamente ao lado dos seus alunos, em pleno salazarismo, no ano de
1962. Vitorino Nemésio, não.
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