O açoriano
universal
Vitorino Nemésio - cujo
centenário do nascimento se completa - revelou na poesia, na ficção, no ensaio
e na crónica de viagem as inquietações do homem universal, com as solicitações
e ansiedades da cultura da sua geração e do seu tempo, mas as raízes e
motivações da quase totalidade da sua obra são visceralmente da Praia da
Vitória, de Angra do Heroísmo, da ilha Terceira, em suma, da região dos Açores.
As características diferenciais do arquipélago dos Açores, perante as outras regiões
do País, são evidentes. Gaspar Frutuoso (1522-1591), nas Saudades da
Terra, obra que inicia a criação literária açoriana, especificou as
singularidades do meio físico e da ocupação humana: "Na verdade,
qualquer ilha destas, neste comprido e largo mar oceano, não é outra coisa
senão uma prisão algum tanto espaçosa, e até, de coisas pequenas, quanto mais
das grandes, uma muito estreita e muito mais curta sepultura."
Reconheceu o papel do homem na modificação do ambiente, o esforço da vontade e
inteligência para o transformar e até contrariar as condições naturais.
Todavia, os factores da insularidade e os condicionalismos do isolamento
atingiram expressão literária profunda em Roberto de Mesquita (1871-1924), que
viveu e morreu no exílio voluntário da ilha das Flores e, muito em especial,
Vitorino Nemésio (1901-1978). O conceito de açorianidade teorizado por Nemésio
surgiu no final dos anos 20 e nos anos 30, períodos de formação e maturidade
intelectual, entre a publicação do Paço do Milhafre (1924), constituído
por textos de ficção - um discípulo de Aquilino transferido para a realidade
insular -, e a poesia, também de conteúdo insular, que reuniu em La
Voyelle Promise (1935) e no Bicho Harmonioso (1938).
Antecedem o Mau Tempo no Canal (1944) e a Festa Redonda(1950),
obras nas quais atingiu a plenitude.
Para Vitorino Nemésio a Geografia predominava sobre a História. A açorianidade
testemunhava uma idiossincrasia própria: "o nosso modo de
afirmação no mundo, a alma que sentimos, na forma do corpo que levamos"
(...) "uma forte variedade da nação portuguesa, criada em meio milénio no
isolamento norte-atlântico.
Fora da ilha ou da região, continua a vê-la e a senti-la: A nortada
encheu de ilhas o horizonte / olhando bem nenhuma è verdadeira / mas cada uma em
mim tem porto e monte / que eu sou homem que vê de outra maneira.
Daí e num dos momentos altos do seu percurso, ao receber o Prémio Montaigne,
atribuído pelo contributo para o património cultural da Europa e a defesa da
universalidade da literatura, quando procedia ao balanço da sua vida e obra,
afirmar categoriamente: Sou ao mesmo tempo e, acima de tudo, português
açoriano europeu, americano brasileiro e, por tudo isto, românico hispânico e
ocidental e gostava de ser homem de todo o mundo.
Decorrido menos de um século após o povoamento das ilhas, há açorianos a
frequentar cursos de Leis, Medicina e Teologia em Coimbra, Évora e Salamanca.
Está provado que Rui Gonçalves, natural de São Miguel, foi para Coimbra e, em
1539, ascendeu à cátedra. No século XVI, no itinerário da Peregrinação,
de Fernão Mendes Pinto, deparamos o açoriano Diogo Pereira, filho de Ana
Pereira, cujo pai, o flamengo Guilherme Van der Hagen, está na origem de
gerações sucessivas de várias ilhas e que tomaram o nome Silveira. Mas não foi
só Fernão Mendes Pinto que falou desse longínquo cidadão dos Açores errando
pelo Oriente. Também o identificou e referiu Diogo do Couto, nas Décadas.
Vitorino Nemésio, ele próprio, no seu modo de ser e de agir e através da
componente da sua obra literária, constitui o exemplo do homem universal, do
açoriano no mundo sempre disposto a participar no encontro de civilizações e de
culturas.
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