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terça-feira, 27 de fevereiro de 2018

Os "Monstros Sagrados" jamais serão esquecidos - Eça de Queirós




 A Madame de Jouarre
Lisboa, começos de setembro
Minha boa Madrinha:

           Em veraneio por esta Lisboa encalorada, aproveito para lhe dar conta das novas e mandados com que esta capital do Reino nos tem brindado nos últimos tempos;  de sobra sei que a minha Madrinha não toleraria que outros lhas confidenciassem, mesmo  com zelo  semelhante ao meu. E como, mais do que o tremendo olhar de Medusa, temo o  sobrolho franzido pelos seus amuos,  aqui venho, pressuroso e obrigado, depor no seu regaço os tais mandados e as tais novas.

Não padeço  da loquaz coscuvilhice de bondosa comadre que a outra comadre revela os segredos da vizinhança; em vez disso, motiva-me o esforço que há longo tempo venho fazendo para entender Portugal e os portugueses. Não é tarefa ligeira, posso assegurar. Coisas que aqui se passam dificilmente encontram parecença com proezas que a História  desveladamente guarda, bem aferrolhadas sob o pó dos seus arquivos  e nos ponderosos volumes que lhes consagrou.  No século que foi o meu, pude testemunhar acontecimentos tão extraordinários como as revoluções que em 48 mudaram o curso secular da velha Europa, a guerra da Crimeia, a ira do grande Hugo contra Napoleão le Petit, a navegação do Suez e o desastre da Comuna. Nada  se compara, contudo,  com  episódios  que nas últimas semanas têm agitado o dia a dia da minha Pátria e dos meus patrícios.
Saberá a minha madrinha que os portugueses têm vivido, nos últimos meses, com a angustiada preocupação de saberem qual será, por fim, o destino de um certo político que durante  anos os governou. Aparentemente em vias de ser acusado de malfeitorias que, jura ele e juram os seus competentes causídicos, jamais cometeu, este homem representa bem, et pour cause, aquilo a que os plumitivos de serviço chamam, com a originalidade que os distingue, a “classe política”. Segundo os meus concidadãos, pertencem a essa “classe” todos aqueles que, intrigando no Parlamento, discreteando em gabinetes ministeriais ou travando esganiçadas batalhas eleitorais, persistem em pôr alguma ordem (ou o que eles entendem como tal) nesta minha terra de doce clima. Os meus compatriotas reservam a esta “classe política” o  desprezo que provém de pensarem, praticamente sem exceção que se conheça, que ela fervilha de “gatunos”; ou que, no dizer de uma minha serviçal,  “eles querem é governar-se”. Não trato de esmiuçar agora  se algum grão de  verdade alimenta estas conjeturas, porque o caso  que lhe ofereço nestas linhas desataviadas é mais flagrante – e bem apetitoso!
A figura de quem tanto se fala esteve encarcerada durante largos meses, por ordem de uma Justiça que, para uns, foi indolentemente branda, enquanto, para outros, tem mostrado mais crueldade do que Nero enfurecido com os primeiros Cristãos. Ignoro  qual das duas fações tem razão. Ignoro-o eu e ignora-o o professor Marcelo, coisa que sobremaneira me  conforta o sono porque assim me acho tutelado pela companhia perspicaz do grande Comentador. O que sei é que nunca a prisão de alguém – para mais um “político”! – agitou tantas emoções e desatou tantos comentários. Não há talvez um só português que não tenha já exarado sobre o homem um veredicto definitivo! Mesmo este seu dedicado afilhado, depois de laboriosas congeminações, vai engendrando uma convicção firme quanto às acusações que sobrecarregam os ombros da criatura. Nisto, devo acrescentar, somos todos  ajudados pelas gazetas (e em especial por um matutino com grande aceitação e esforçados informadores) que diariamente nos trazem  notícia de novas aleivosias e de novas cumplicidades, prontas a serem assacadas ao pobre arguido.
O caso que sobre todos os outros motiva esta minha epístola aconteceu há alguns dias e trouxe de novo a tal personagem (mas não só ela!) para o centro daquilo a que os periodistas chamam “espaço mediático”. Tendo sido aliviado da  frieza do cárcere em que jazia, o nosso homem  foi colocado naquilo a que prosaicamente se chama “prisão domiciliar”, um conforto  que lhe dá direito a ostentar à porta (ou nas escadas, não posso precisar) um garboso polícia. Situada numa sossegada rua de Lisboa, a discreta casa que assim serve de “prisão domiciliar” foi objeto, desde logo, da voracidade noticiosa de jovens repórteres que, de câmara e microfone em punho, ali montaram um cerco mais tenaz do que o assédio que por dez anos sitiou os muros de Troia.
Acabou-se, pois,  a pacatez daquela rua e daquela casa, para gáudio da vizinhança (que legitimamente aspira a “aparecer na televisão”) e sobretudo do “Cantinho do Abade”, pitoresca casa de comidas e bebidas que ali está paredes meias com o tal domicílio. Com razão o  digno proprietário do “Cantinho”  esfrega já as mãos de contentamento, regalado com uma tão inesperada publicidade. E de facto, logo no princípio da noite em que este caso começou, estava a rua enxameada de repórteres;  ali foram eles conduzidos  por uma intuição luminosa, pois que de outro modo nunca saberiam quem naquela casa obrigadamente passava a residir e nem testemunhariam o que se  seguiu.
Imagina a minha madrinha que foi o tal político a colher a atenção dos  repórteres? Engana-se e  engana-se redondamente, como  os seus claros olhos poderão ver e rever! Quem ali foi entrevistado e minuciosamente filmado foi o expedito funcionário de uma empresa de pizzas! Nem mais, minha madrinha! O rapaz da pizza, ostentando o seu  elmo de motociclista elegantemente descaído sobre a nuca, para que o seu rosto agora famoso ficasse bem à vista de todos.
Ao que parece, o tal político teve a veleidade de,  nas suas primeiras horas de quase liberdade, encomendar uma iguaria que lhe confortasse o estômago, desconsolado como estava pelos   meses em que teve de se contentar com as austeras ementas prisionais. Em má hora o fez  – para ele, porque acabou por ficar sem a encomenda. Mas em boa hora o decidiu, para o tal mancebo, que é hoje uma figura famosa para uma boa parte dos portugueses que seguem estes  incidentes com atenção gulosa.
           Adivinho daqui a sua perplexidade e bem compreensível é ela. Não há, com efeito, palavras que decentemente relatem os cinco minutos de fama que o Destino  reservou a um jovem até então mais estranho às massas do que para mim o é a remota gramática do sânscrito; só mesmo o grande Balzac e a  pena com que ergueu, para nossa ilustração, todo um mundo de carateres e de paixões, só  ele poderia descrever com precisão e com verdade o rosto atónito e quase divertido  do moço metido em tais apertos. Limito-me, por isso, aos breves traços que a minha inépcia de cronista improvisado consente.
Ao chegar à porta  número 33, com o intuito de entregar a sua mercadoria, e não tendo tido a  intuição dos repórteres  (e, portanto, desconhecendo não ao que ia, mas a quem ia…), foi o moço prontamente intercetado por câmaras de filmar, por microfones  sequiosos e por  perguntas em catadupa: quem  tinha feito a encomenda?  A que andar iria ela subir? Sabia ele a quem os víveres se destinavam? E mais: que condimentos temperavam a pizza? Perante estas ingentes questões, o rapaz olhou com desconfiança risonha aquele bando de perguntadores e só pôde manifestar a  inocente surpresa de quem inopinadamente se vê em semelhantes assados.  De todas as perguntas só encontrou resposta para uma: a pizza era de extra-queijo e pepperoni,  uma  informação, minha madrinha,  que os historiadores e os sociólogos que atentamente nos esperam lá no futuro não se atreverão a descurar. Extra-queijo e pepperoni! 

(Continua)
          
Carlos Alberto Alves

Sobre o autor

Carlos Alberto Alves - Jornalista há mais de 50 anos com crónicas e reportagens na comunicação social desportiva e generalista. Redator do Portal Splish Splash e do site oficial da Confraria Cultural Brasil-Portugal. Colabora semanalmente no programa Rádio Face, da Rádio Ratel, dos Açores. Leia Mais sobre o autor...

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