CRÓNICA
SEM TÍTULO...
... E sem
assunto!
Já mudei
de lugar, deixei o pequeno escritório onde costumo redigir estas crónicas e
sentei-me na mesa da cozinha, armado de computador. De costas para a janela,
vejo a minha silhueta refletida no ecrã, as palavras que escrevo, se pudessem
passar para além das margens da branca página, poderiam parecer sair-me pela
boca fora ou rabiscar-me a cara, qual preto bigode a contrastar com os pelos
esbranquiçados que me cobrem o espaço entre o lábio superior e o nariz.
Escrevi já
dezenas de palavras e ainda não disse nada! Não é que não tenha nada para
dizer, se eu me concentrar um pouco sou capaz de encher três ou quatro páginas
facilmente; o meu problema, hoje, é decidir qual o assunto que devo escolher
para trazer ao vosso regaço. Eles são tantos e tão variados que acabam por
misturar-se nos neurónios do meu cérebro. Ocorre-me um mas logo penso que já
falei nisso algumas vezes e não vale a pena estar a malhar no mesmo assunto;
surge outro de seguida e noto que talvez não seja conveniente focar esse ponto,
até porque não sou especialista nesse campo (nem que eu fosse especialista
nalguma coisa...) e, portanto, o melhor é deixar isso de lado.
Lembrei-me
então de tentar imitar os famosos escritores de Bailinhos e Danças de Carnaval.
Devo adiantar que esse é talvez um dos temas em que eu nem devia meter o
bedelho, são poucas as Danças que vejo, embora aprecie um bom enredo e uma boa
representação. Contudo, reconheço e admiro a trabalheira que os grupos têm para
trazerem aos palcos – já não dançam nos terreiros – uma produção que, esperam
eles, seja do agrado do pessoal que passa horas sentado nos salões.
Tal como
vem acontecendo de há uns anos para cá, servi-me do computador para, no canal
da VITEC, visualizar um pouco do “maior espetáculo de Teatro Popular do Mundo”,
como é fino dizer-se agora. Esta espécie de chavão é atribuída a José Orlando
Bretão, um estudioso do Carnaval terceirense que, se visse o que se passa nos
dias de hoje ao redor da Ilha, talvez não ia ficar muito satisfeito. Ou, quem
sabe se estou enganado e ele ficaria contente de ver as modificações
introduzidas, a evolução na qualidade das músicas e a quantidade de novos
elementos que aderem aos grupos, tanto como bailarinos ou tocadores dos mais
variados instrumentos musicais.
Tive a
sorte de ver duas das Danças que são sempre das mais admiradas: uma da Praia da
Vitória, com um guarda-roupa que me pareceu um pouco exagerado mas recheada de
bons actores e maravilhosas cantoras e outra do famoso Grupo da Agualva, onde o
autor João Mendonça se faz acompanhar, como é costume, por um leque de
excelentes artistas e músicos. Mas – tem que haver um «mas» nestas coisas - a
Dança que me encheu mais as medidas foi a do Grupo da Casa da Lata, na
Ribeirinha. Já estou a ver a cara dos entendidos nestas coisas a apontar-me o
dedo para me corrigirem e dizerem que estas três que mencionei não são Danças
mas sim Bailinhos – agora já não se escreve Bailhinhos, com «h»,como se
escrevia antigamente. O Bailinho da Casa da Lata, que já vi duas vezes,
tocou-me mais cá dentro do peito porque o João Mendonça, autor do assunto,
resolveu incluir a pessoa do meu pai como uma das personagens do enredo. Se
fosse vivo, ele não ia gostar de se ver a declamar louvores ao Lusitânia mas...
é Carnaval, não se estranha. Foi o autor, de maneira sábia e comovente, buscar
ao livro de Augusto Gomes «Filósofos da Rua», algumas das figuras populares da
cidade de Angra do Heroísmo, do século passado e, pela boca delas, mandou uma
série de recados e fez criticas contundentes. Sem usar de brejeirices ou
palavras menos limpas, João Mendonça deu voz ao «Fifi das Flores», ao Sr.
Domingos Salvador (o Domingos «Praça Velha»), ao João dos Ovos, ao meu tio-avô
António Bailhão, antigo guarda do Jardim Duque da Terceira e ao meu pai, o
proprietário da Loja do Ti Bailhão, de modo que, juntos e comandados pelo
António “Bolacheiro”, pudessem dar umas bordoadas em certos políticos do burgo
e da região. Não sei se pelo facto de o mesmo autor ter escrito pelo menos um
dos outros Bailhinhos que citei acima, apercebi-me que alguns dos temas
representados eram comuns ou pelo menos semelhantes.
Falou-nos
no grande problema que é a descontaminação dos solos e das águas das zonas ao
redor da Base das Lajes, não deixando de referir que tudo era uma maravilha
quando podíamos usufruir dos benefícios da presença dos americanos na Terceira
mas que, agora que eles estão quase pela porta fora, já não se pode “desviar”
como se desviava e só ficámos foi com água poluída e falta de trabalhos; foram
notórias também as menções à antiga e sempre presente rivalidade entre a
Terceira e o “Japão” do Atlântico, não deixando sequer de fazer com que os
interpretes se expressassem com um pesado sotaque micaelense.
Outro
ponto saliente nestas representações é a comparação entre o Carnaval de
antigamente e o de agora. Ao lado das vozes saudosistas que dizem que outrora é
que era a sério e verdadeiro, aparecem os argumentos que na era moderna o
Carnaval terceirense tem melhorado. Despontaram novos autores, alguns grupos
estão recheados de actores de gema e é cada vez mais saliente a presença de
jovens dos dois sexos. Tal como em tudo na vida, o Carnaval também tem que
evoluir, tem que aceitar novas ideias e novos rumos. Estagnar é morrer e o
Carnaval não pode morrer. Apenas há que manter a preocupação de levar ao palco
bons assuntos, bem escritos e bem representados. Mas, se aparecer algum grupo
menos preparado ou preocupado, pois que seja aceite do mesmo modo, felizmente o
nosso Carnaval não é um concurso, não é uma disputa para eleger o melhor autor
ou a melhor cantora. É, acima de tudo uma manifestação da nossa cultura, feito
pelo povo e para o povo. O facto de ser ou não o maior espetáculo de teatro
popular do mundo é coisa que não preocupa muito a nossa gente.
Afinal
sempre deu certo mudar de lugar e ter apanhado nas costas um calorzinho do sol
através da janela da cozinha. Comecei por dizer que não sabia por onde começar
e acabei por arranjar assunto
baseado nos assuntos
dos Bailinhos de Carnaval.
Título
para esta crónica é que ainda não arranjei.
Ponham
vocês o que bem lhes apetecer...
Lincoln,
Ca. Fev. 14, 2018 – Quarta-Feira de Cinzas
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