JORNALISMO EM DESTAQUE

485º Aniversário da Cidade de Angra do Heroísmo

sexta-feira, 23 de fevereiro de 2018

Os "Monstros Sagrados" jamais serão esquecidos - Natália Correia


Natália Correia: uma mulher contra as opressões

Lembrei-me, não sei porquê, de Natália Correia, ao ouvir Passos Coelho dizer, num jantar com deputados do PSD, "as eleições que se lixem."
Lembrei-me, não sei porquê, de Natália Correia, ao ouvir Passos Coelho dizer, num jantar com deputados do PSD, "as eleições que se lixem." O propósito do dito talvez fosse meritório, mas caiu mal. Claro que nem ele, nem nenhum
político desejam que as "eleições se lixem." E a Natália veio-me à memória porque pensei o que diria ela, que gazetilha improvisaria sobre a extraordinária afirmação do primeiro-ministro.

Faz-nos falta e à sociedade portuguesa, a grande poetisa (Fajã de Baixo, São Miguel, Açores, 13. Setembro. 1923 - Lisboa, 16. Março. 1993). Cá em casa recordamo-la com frequência. A minha mulher e ela conversavam muito, trocavam ideias sobre o mundo, a família, e o que estava a acontecer. Ela gesticulante e em alta grita, previa negros dias para todos nós. A mediocridade e o compadrio, o nepotismo e os malabarismos do poder, que começavam a surgir às claras, sem pudor, sem escrúpulo e sem vergonha, mereciam-lhe arrochadas verbais que não esqueciam, sequer, os seus próprios amigos. 

Estive com ela e com o marido, Dórdio Guimarães, poucas horas antes da sua morte. Eu frequentava o Botequim, na Graça, onde se jantava, bebia, conversava, cantava, dizia atoardas e recitava poesia até altas horas. Foi, o Botequim, a última tertúlia literária e política, animada por ela e pelo seu extraordinário talento. O Manuel da Fonseca, que tinha casa na Penha de França, telefonava-me, eu morada mais abaixo, em Alfama, e encontrávamo-nos no Botequim. Pouca ou nenhuma ideia se faz hoje do alvoroço que se vivia naquele espaço de cordialidade, de crítica e de mal-dizer. 

NATÁLIA CORREIA E AS PROSTITUTAS

Transcrevemos, do jornal "i", um oportuno texto de Fernando Dacosta sobre a prostituição:

Sacerdotisas do amor
  
Ao entrar, de madrugada, na rua onde vivia (zona de fecunda prostituição), Natália Correia abria a janela do carro e exortava: “Meninas, não se deixem humilhar, lembrem-se que são sacerdotisas do amor!”
Logo era rodeada de estrídulas afectuosidades das prostitutas, dos prostitutos, dos travestis, dos chulos, dos vadios, dos guarda--nocturnos, rendidos ao incitamento da “senhora poeta” a falar--lhes como ninguém lhes falava – os dignificava, os elevava.
Quase ao mesmo tempo, outro poeta de génio e de provocação, Jorge de Sena, perguntava através dos jornais, nessa altura bastante mais ousados: “Se se faz amor por tanta coisa, porque não fazê-lo por dinheiro?”, e reivindicava “o direito de todo o ser humano à liberdade de se relacionar intimamente com quem quiser ou puder”. “Se não fossem os profissionais do sexo, que seria dos velhos, dos disformes, dos tímidos?”
Quando a política (a religião, a justiça) entra na cama das pessoas, dá asneira. É o caso, agora, do Parlamento Europeu ao querer penalizar os clientes das prostitutas.
Entre nós, um deputado do PSD, Duarte Marques, insurgiu-se, no entanto, contra semelhante projecto e, sem papas na língua nem beatice nas ideias, declarou tal ser “um disparate”, até porque, pessoalmente, defendia “a legalização da prostituição”, “porque nunca se vai acabar com ela” – revelando-se mais progressista que muitos dos colegas à esquerda.
Desassombrado, Jorge de Sena rematava sobre estes temas: “Se a vocação dos portugueses é serem prostitutas, como mostra a história” – e ele não viu a nossa horizontalidade ante a troika – “por que razão as prostitutas não podem sê-lo com os seus apegados clientes?” 

Muito pertinente este artigo de Fernando Dacosta, numa altura em que os eurodeputados (a soldo de que inconfessáveis interesses?) aprovaram uma recomendação para criminalizar os clientes das prostitutas.

A posição de Natália Correia e de Jorge de Sena, duas incontonáveis figuras da cultura portuguesa, é de meridiana clareza sobre a matéria. Como escreve Dacosta, "quando a política (a religião, a justiça) entra na cama das pessoas, dá asneira." Exactamente.

Agora que temos novo referendo sobre a interrupção voluntária da gravidez, aí vai o poema de Natália Correia para recordarmos.
«O acto sexual é para ter filhos» - disse na Assembleia da República, no dia 3 de Abril de 1982, o então deputado do CDS, João Morgado, num debate sobre a legalização do aborto.

A resposta de Natália Correia - em poema, publicado depois pelo Diário de Lisboa em 5 de Abril desse ano - fez rir todas as bancadas parlamentares, sem excepção, tendo os trabalhos parlamentares sido interrompidos por isso:
Já que o coito - diz Morgado -
tem como fim cristalino,
preciso e imaculado
fazer menina ou menino;
de cada vez que o varão
sexual petisco manduca,
temos na procriação
prova de que houve truca-truca.
Sendo pai só de um rebento,
lógica é a conclusão
de que o viril instrumento
só usou - parca ração! -
uma vez. E se a função
faz o órgão - diz o ditado -
consumada essa excepção,
ficou capado o Morgado.

Carlos Alberto Alves

Sobre o autor

Carlos Alberto Alves - Jornalista há mais de 50 anos com crónicas e reportagens na comunicação social desportiva e generalista. Redator do Portal Splish Splash e do site oficial da Confraria Cultural Brasil-Portugal. Colabora semanalmente no programa Rádio Face, da Rádio Ratel, dos Açores. Leia Mais sobre o autor...

Sem comentários:

Enviar um comentário