JORNALISMO EM DESTAQUE

485º Aniversário da Cidade de Angra do Heroísmo

domingo, 25 de fevereiro de 2018

Roberto Carneiro um dos expoentes da intelectualidade


Continuação de um retrato de família

Era politizada?
Rosário — Não, não era. Mas estudar Ciências Sociais e Políticas pode provocar muitas coisas na pessoa. Interrogar, questionar, valorar, balancear.
Foi criado no Ministério do Trabalho e das Corporações o Gabinete de Organização (GO) para jovens recém-licenciados. Fui convidada a fazer parte. Um dos trabalhos que me foram encomendados foi análise de conteúdo da expressão “Estado Social”, que fazia parte do discurso de Marcelo Caetano. Cheguei à conclusão de que não tinha conteúdo.


Depois foi/foram trabalhar na área da Educação. No tempo de Veiga Simão? Em que anos?
Rosário — Em 1972. As áreas onde trabalhei eram de novo áreas em que era necessário pensar o desenvolvimento e o que é que tinha de ser feito para promover crescimento. Quer dizer, não por ser politizada mas pelas áreas em que trabalhei, há uma progressiva consciência política. E isto é ser-se político.
Roberto — A casa de José Veiga Simão é uma verdadeira central de sedição contra o regime. Acho que Veiga Simão é um homem de grande coragem, sendo-lhe devida uma homenagem que terá de ser feita um dia.

A relação com Veiga Simão vinha de trás.
Roberto — Sim. No período do marcelismo, já a vida andava numa grande fona. Fazia jornalismo, para ganhar algum dinheiro e complementar a bolsa de estudo, quando Fraústo da Silva me convida a trabalhar no seu gabinete, que viria a ter papel preponderante na reforma Veiga Simão [que promoveu a democratização do ensino]. Recordo ainda que, fruto dos constantes choques com a Comissão de Censura Prévia, sou interrogado pela PIDE, por duas vezes, na Rua António Maria Cardoso, durante as quais me acusam de ser simpatizante comunista!

Que coisa inesperada. Por causa do jornalismo?
Roberto — Sim, e também (viria a descobri-lo mais tarde nas fichas da PIDE-DGS) por ter intensas actividades na associação de estudantes (onde venho a ser eleito para dirigir a acção cultural) e na juventude católica, primeiro como aluno, mais tarde como monitor, assistente e regente de curso até 1974-75, com colegas do IST de “extracção comunista”.

Podemos dizer que ideologicamente está mais à esquerda e que a matriz conservadora resulta da fé católica? 
Roberto ¬— Melhor, talvez impregnado de um catolicismo de pendor fortemente social. Tinha lido Hegel, Marx, Gramsci, Rosa Luxemburgo, bem como Emmanuel Mounier e Jacques Maritain, pais do movimento do “personalismo humanista” muito em voga entre universitários católicos nos anos 60 e 70.

Que relação teve com partidos de direita?
Roberto — Com o CDS tive uma relação de amor-ódio ao longo dos anos. O partido é fundado em 1974 e eu faço a tradução para inglês da sua Declaração de Princípios e Estatutos por incumbência do Adelino.

Viria a ser ministro da Educação de um governo de direita, de Cavaco.
Roberto — Conheço Cavaco Silva na qualidade de ministro das Finanças de Sá Carneiro. Fui ministro da Educação do seu Governo entre 17 Agosto 1987 e 1 Novembro 1991.
Mas voltando um pouco atrás, lembro que tenho um despacho de um secretário de Estado de um dos últimos governos provisórios, em 1976, a sanear-me da função pública — por não dar garantias para o regime democrático! Vi-me saneadíssimo já com dois filhos e um terceiro a caminho. Foi isso que me fez intensificar pequenas experiências anteriores e enveredar por uma via de trabalho de consultoria internacional.

Foi ganhar a vida lá fora.
Roberto — Viajava seis, sete meses por ano. A tal ponto que uma filha pequenina me estranhava: “Quem é este senhor?”
Rosário — Ela então acedia a identificá-lo por “Senhor papá”. Não sei se era a Joana se era a Teresa.
Roberto — Penso que era a Joana. Uma enorme perda para mim, uma grande falta para eles. Fui obrigado a pagar um preço elevado por estar ausente de casa, por longas temporadas, em período formativo essencial dos nossos três filhos mais velhos.

Nunca pensou trabalhar menos e ter menos filhos?
Roberto — Nunca pensámos ter menos filhos, só quando as restrições fisiológicas se impuseram.
Rosário — Quando nasceu o António, a médica disse: “Não me parece boa ideia engravidar outra vez.”
Roberto — Tinhas 41 anos.
Rosário — 40, Roberto, o António é o presente dos meus 40 anos. Nunca deixei de trabalhar. Tive as licenças de maternidade, que à data eram de um mês. E tinha dois trabalhos, trabalhava no Ministério da Educação e dava aulas na faculdade. Nunca coloquei a questão de ter de trabalhar nos dois sítios para fazer face às despesas dos meus filhos. A única vez em que isso aconteceu foi quando o Roberto foi ministro.

Porquê?
Rosário — Até aí, trabalhava porque gostava de trabalhar. E conseguia, achava eu, se calhar mal, estar com as crianças, dar-lhes a atenção de que necessitavam. Quando o Roberto foi ministro, já tínhamos oito filhos. A nossa conta bancária descia, descia...
Roberto — Contávamos o dinheiro.
Rosário — Era o que mais faltava os meninos ficarem com restrições! Lembro-me de ter pago pão com cartão de crédito. Mas não digo isto de um ponto de vista miserabilista. Foi o resultado das nossas opções.
Roberto — Houve restrições. Sapatos e roupa…
Rosário — Sempre passaram de uns para outros, com restrições ou sem restrições.
Roberto — A abastança não faz bem. As pessoas ficam muito acomodadas. Tem de se viver confortável, mas dinheiro de mais não presta.
Rosário — O que é de mais entope. O que os filhos, sobretudo, nos suscitaram foi uma enorme criatividade em encontrar soluções.
Roberto — Até esta casa.

Mudaram-se para aqui quando eles eram três. É uma moradia agradável.
Rosário — Pudemos vir para aqui porque a tia do Roberto, que era a dona da casa, achou-nos graça e arranjou um modelo próprio de aquisição. Não ficámos a dever nada, mas não pagámos juros. Com os juros a 20 e a 30%, como então se pagavam ao banco, nunca viveríamos aqui.

Como é que passaram a cada filho a noção de que eram únicos, no sentido de haver um tempo só deles, uma dedicação e uma atenção que os preenchia?
Rosário — Tentámos que nos quartos, que eram partilhados, houvesse zonas próprias, intocáveis, de cada um. Nisso era muito rigorosa. Aprender que há um espaço próprio, que não pode ser violado, é uma aquisição básica na vida. Passa-se do físico para o espiritual. E tentámos encontrar momentos de saída, de reflexão com cada um. Adoptei o sistema de um almoço fora, por semana, com cada um.

Arranja-se espaço para o silêncio numa casa tão cheia?
Rosário — Hoje tenho netos, que são barulhentos. Os que não têm filhos dizem-me: “Como é que a mãe aguentava isto?” Não tenho essa memória. Houve uns que choraram mais que outros. Houve uma que chorou particularmente durante os dois primeiros meses da sua rica vida. Cheguei a perguntar ao Roberto o que é que achava de a pôr na varanda um bocadinho [risos].

Como é que era à mesa?
Roberto — Uma Babilónia.
Rosário — Às refeições era péssimo, mas era tão bom. Às vezes, o Roberto dizia: “Vou levar não sei quem para jantar”, e as pessoas ficavam atónitas. As conversas cruzavam-se de uma ponta para a outra da mesa. E havia momentos em que estavam todos e não havia barulho nenhum. Também me lembro de chegar a casa e de estarem nove à espera que eu chegasse. E todos a querer dizer qualquer coisa. Eu olhava para eles, fechava a porta e ia-me embora. Dava uma volta ao quarteirão [risos].

É importante que diga isso. Há a ideia da mãe idílica que adora sempre os filhos, que tem sempre disponibilidade para eles.
Rosário — Ai, não pode. Então uma pessoa chega a casa, apanha aquelas almas a gritar, a vociferar contra qualquer coisa...

Conseguiram tempo para os dois, espaço para o casal?
Roberto — Fazíamos, pelo menos, uma viagem por ano. Nas minhas múltiplas deambulações profissionais pelo mundo, a minha mulher ia comigo uma semana, duas semanas...
Rosário — Muito cedo realizei que a minha cabeça, para se manter saudável, precisava nem que fosse de 24 horas fora. Essas viagens eram um bom tempo para estarmos juntos. Também com regularidade íamos jantar só os dois.

Sem culpa de deixar os miúdos todos?
Rosário — Sem culpa nenhuma [risos].
Roberto — Os dois sozinhos. Senão pirávamos.
Rosário — É fundamental. Recomendo aos nossos filhos que têm filhos pequenos que têm de encontrar dias durante o ano para saírem sozinhos.

Não parecem pessoas que estão sempre a correr. Se calhar é porque vos encontro com os filhos criados.
Rosário — Mas corremos muito.
Roberto — Há a sabedoria que resulta da experiência de vida acumulada. É preciso relativizar as coisas. Por exemplo, outro dia, o nosso neto Manuel partiu a cabeça. Claro que foi preciso ter calma e também ter em consideração que o tio António se encontrava por perto, no Centro de Saúde ao pé de casa..
Rosário — Ai, foi um grande susto. Coitadinho.

O que é que são os dramas, mesmo? O que é que se impõe como uma coisa que não é possível relativizar?
Rosário — A asma do João nunca pôde ser relativizada. O estrabismo de uma filha. O dinheiro não chegar. Um bebé que se perde não pode ser relativizado.

Foi a primeira gravidez?
Rosário — Já tínhamos três. Era o quarto.
Roberto — Cinco meses. Tivemos de fazer um funeral.
Rosário — Estive péssima. O Roberto estava no Brasil, foi o Adelino que me levou para o hospital.
Roberto — Já tinha nome, era o David.
Rosário — Mas aprende-se a superar. E mais do que a superar, aprende-se imenso para a vida. No meu caso, foi de tal forma terrível essa perda, de um ponto de vista físico, que aprendi como é bom estar vivo. Aprendi a não ter medo da morte.
Roberto — Tivemos seis filhos depois disso, graças a Deus.

É a fé que vos alimenta nesses momentos e que vos faz acreditar que a seguir vem a maré boa?
Roberto — Com certeza. Como dizia Agostinho da Silva, a seguir à maré vazia há sempre uma preia-mar!
Rosário — A fé dá-nos o enquadramento. Não é no sentido estático, de pura contemplação. Alimenta a força para superar, para encontrar uma interpretação.

Quando é que se vão abaixo?
Roberto — A minha mulher é muito mais forte que eu. É a rocha sobre a qual está implantada firmemente a casa, que resiste a todos os temporais. Nunca a vi com atitude desistente.
Rosário — Tem que ver com a natureza das pessoas. Perguntavam-me: “Como é que faz com tantos filhos?” É uma pergunta chata, mas arranjei uma maneira parva de responder: “É tudo uma questão de organização.” Há pessoas que têm capacidade para ter nove filhos, outras não. A capacidade que tenho de olhar para as coisas também tem que ver com a minha natureza, com a tal assertividade que eu digo que não tinha mas que, pelos vistos, tinha. Tenho esta postura muito positiva. Por isso é que me é tão grato este novo Papa: aposta tanto na alegria.
Roberto — Resulta daí uma grande força. Há a certeza de que o Pai deixa sempre uma janelinha aberta, uma pequena fresta que nos compete encontrar.

Agora imaginem que os vossos netos, daqui a uns anos, vão ler esta entrevista. O que é que vão dizer dos avós, deste retrato que deram?
Roberto — Que para nós os valores de família se impuseram como a coisa mais sólida, fundamental e insubstituível na formação de personalidades plenas, íntegras e solidárias.
Rosário — Que fiquem com a ideia de que tivemos uma vida boa. E que essa é a herança que lhes queremos deixar. Uma vida boa no sentido em que pudemos fazer aquilo que desejámos fazer. Pudemos ter uma família grande, que tivemos a sorte de ser composta por pessoas fantásticas. São nove seres saudáveis, eu diria bonitos. Que tivemos a sorte de ter participado na sociedade, em tantos projectos.
Roberto — Que eles descubram, como nós descobrimos, que a felicidade está na relação com o outro. Dar, dar, dar é o lema de vida. Dar sem limites e sem esperar reciprocidade nem contabilizar perdas e ganhos.
Rosário — Recebemos também dos nossos filhos e dos nossos netos, e das pessoas com quem nos relacionamos. Esta cadeia do dar e receber, isso sim, é uma maré que vai e vem. Mas temos de a alimentar. Se nada se envia, nada retorna.

Carlos Alberto Alves

Sobre o autor

Carlos Alberto Alves - Jornalista há mais de 50 anos com crónicas e reportagens na comunicação social desportiva e generalista. Redator do Portal Splish Splash e do site oficial da Confraria Cultural Brasil-Portugal. Colabora semanalmente no programa Rádio Face, da Rádio Ratel, dos Açores. Leia Mais sobre o autor...

Sem comentários:

Enviar um comentário