A Génese de um Povo
A refeição chegou muito tempo depois, fumegante,
num alguidar de barro de cujo interior provinham diferentes odores a infância e
a flores. A sua chegada, a sala inteira pareceu aquecer-se. Como em criança,
José Artur pegou numa fatia
do pão doce cortado à sua frente e colocou-a no
fundo do prato, derramando sobre ela sucessivas conchas do caldo em que a carne
mergulhava. Depois ergueu gravemente um dos pedaços dessa carne e passou-o para
o prato também.
Levou o garfo à boca e fechou os olhos, a manteiga e o cravo-da-índia e o
toucinho de fumo diluindo-se e recombinando-se numa afluência de sabores que se
metamorfoseava. Ganhavam, perdiam e recuperavam cambiantes, à medida que
entravam em acção novos ingredientes ainda, o vinho e a pimenta da Jamaica e a
cebola e a banha de porco e de novo a carne, magnífica, derretendo-se-lhe na
boca e fundindo-se com ela, como se ele tivesse, finalmente, atingido terra
firme.
Comeu até ao fim, numa voragem antiga, e depois pegou nos últimos pedacinhos do
pão doce e pôs-se a ensopar o resto do molho, comendo-os também.
«Massa sovada», lembrou-se. «Massa sovada!» Sabia-lhe a terramotos e a
redenção.
Chegou-se para trás. «Seja como for», pensou, «se um dia houve uma civilização
superior, anterior a tudo, precursora e perfeita, bem pode ter sido aqui.»
Naquela carne e naquele pão se concentrava tudo o que podia destruir um povo e
permitir-lhe viver novamente.
Joel Neto, in 'Arquipélago'
(Excerto sobre os Açores)
Sem comentários:
Enviar um comentário