TEMPOS DE RECRUTA
Para muita
rapaziada da minha geração, os tempos de tropa foram bem amargurados.
Melhor
diria que, para a geração anterior à minha, ainda terão sido bem piores. Alguns
inscreveram-se como voluntários, uns pelo espírito de aventura, outros para ver
se conseguiam desenrascar-se o mais cedo possível daquela imposição, para
poderem imigrar ou prosseguir com as suas vidas. A grande maioria foi mesmo
obrigada a marchar sem apelo nem agravo. Outros, mais esclarecidos
politicamente, resolveram abandonar o país e procurar novas vidas. Não quero
estar, aqui e agora, a fazer a resenha histórica das Guerras Coloniais; estão
ainda bem frescas na memória das gentes da minha idade as amarguras, o
sofrimento causado em milhares de famílias, com a incerteza do regresso ou a
perca de filhos, pais ou maridos. Ainda estão também por contabilizar os danos
emocionais e psicológicos causados entre os que tiveram a sorte de voltar ao
seio das suas famílias. Deixo isso para os especialistas.
A minha
guerra não foi nada de especial, comparada até com a do meu irmão, que andou
pelas matas da Guiné. Perdi anos da minha vida, estragou alguns sonhos de
estudos mas posso dar-me por feliz, a minha carreira militar até teve momentos
de aprendizagem e de boa camaradagem. Por razões que nunca entendi, a minha
incorporação no exército foi sendo adiada. Entretanto, fui seguindo a minha
vida, sempre com a ténue esperança que não se lembrassem de mim. Mas claro que
não se esqueceram e até tiveram a amabilidade de me chamar exactamente um mês
depois do dia do meu casamento! Brava sorte!
Valeu-me a
presença do Zeca Ávila para ajudar a passar aqueles dias, metido naquele imenso
convento e rodeado por gente que não me interessava conhecer. Para mais, um dos
colegas de caserna, alfacinha mais palrador que um papagaio, apelidou-nos de
“Os Belicas” – ele tinha um amigo micaelense que usava muito essa expressão e
então resolveu baptizar os açorianos com essa alcunha. O Zeca, que tinha um
sentido de humor muito fino, não se importava mas, a mim, só me apetecia era
dar-lhe um pontapé mesmo nos países
baixos.
Fiquei a
conhecer pouco do monumento nacional que é o Convento de Mafra, bem como a sua
igreja e biblioteca. Não tinha paciência para visitas turísticas. Contudo, um
dia, num passeio com o Zeca, ao fim da tarde, pela praça principal da Vila,
lembrei-me de procurar um taxista de que me havia falado o meu amigo Joaquim
Maria da Costa. Vi um senhor bem posto, mesmo ao lado do seu bonito Mercedes e
perguntei-lhe se me poderia indicar o Sr. António Alves. O homem olhou para
mim, com um sorriso simpático e disse-me, de rompante, “O meu amigo é
Terceirense, não é verdade?”. Era ele mesmo, o Sr. Alves que eu procurara, deu
logo pelo meu sotaque de rabo-torto que se lhe tornara familiar na visita que
fez à família do filho, sargento da Força Aérea na Base das Lajes.
Encontrámo-nos outras vezes, ali na mesma praça. Era uma delícia conversar com
ele, saber das suas caçadas pelos campos do Alentejo e das suas recordações dos
dias que passou na Terceira. Quando vim a saber que a minha permanência em
Mafra estava no fim, fui despedir-me dele.
Faço o
possível por me esquecer de pormenores relacionados com os dias de recruta, mas
do jantar em casa dos senhores Alves, esse eu nunca mais vou esquecer. Nessa
noite, com aquele tinto a dar-me uma força hercúlea, se o alfacinha que nos
chamava “Belicas” me aparece pela frente, ele ia levar um tal pontapé que os países baixos lhe
iam sair pelo buraco do umbigo fora.
Lincoln,
Ca. Junho 28, 2016
João
Bendito
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