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quinta-feira, 1 de março de 2018

Da Califórnia de João Bendito


TEMPOS DE RECRUTA

Para muita rapaziada da minha geração, os tempos de tropa foram bem amargurados.
Melhor diria que, para a geração anterior à minha, ainda terão sido bem piores. Alguns inscreveram-se como voluntários, uns pelo espírito de aventura, outros para ver se conseguiam desenrascar-se o mais cedo possível daquela imposição, para poderem imigrar ou prosseguir com as suas vidas. A grande maioria foi mesmo obrigada a marchar sem apelo nem agravo. Outros, mais esclarecidos
politicamente, resolveram abandonar o país e procurar novas vidas. Não quero estar, aqui e agora, a fazer a resenha histórica das Guerras Coloniais; estão ainda bem frescas na memória das gentes da minha idade as amarguras, o sofrimento causado em milhares de famílias, com a incerteza do regresso ou a perca de filhos, pais ou maridos. Ainda estão também por contabilizar os danos emocionais e psicológicos causados entre os que tiveram a sorte de voltar ao seio das suas famílias. Deixo isso para os especialistas.
A minha guerra não foi nada de especial, comparada até com a do meu irmão, que andou pelas matas da Guiné. Perdi anos da minha vida, estragou alguns sonhos de estudos mas posso dar-me por feliz, a minha carreira militar até teve momentos de aprendizagem e de boa camaradagem. Por razões que nunca entendi, a minha incorporação no exército foi sendo adiada. Entretanto, fui seguindo a minha vida, sempre com a ténue esperança que não se lembrassem de mim. Mas claro que não se esqueceram e até tiveram a amabilidade de me chamar exactamente um mês depois do dia do meu casamento! Brava sorte!

 Assentei praça na Escola Prática de Infantaria, em Mafra, na que foi a primeira incorporação a seguir ao 25 de Abril de 1974. Acompanhado do meu amigo Zeca Menezes Ávila e de um jorgense que eu conhecia de o ver no Seminário de Angra, comecei o que estava programado como o período de recruta do curso de Oficiais Milicianos. Logo nos primeiros dias deu para eu entender que aquilo não era para mim. Desde pequeno que sempre gostei de fazer coisas a meu belo prazer, sem regras e restrições e aquele modo de vida estava a dar-me voltas à cabeça. Não tinha jeito nenhum para aquilo e nem fazia esforço para me adaptar. Arrastava os pés nas marchas, virava à esquerda se o instrutor mandava virar à direita, não conseguia fazer uma continência como era dado fazer e então aprender a limpar, desmontar e montar de novo a G3... nem se fala nisso, restavam sempre peças. Atingi o cúmulo da mediocridade militar no primeiro dia de prática na carreira de tiro. Como não prestei atenção às instruções para usar a maldita arma na posição de tiro-a-tiro, quando carreguei no gatilho as balas saíram de rajada de tal modo que a G3 me saltou das mãos para fora. Poderia ter causado um acidente grave. O oficial responsável revirou os olhos e apercebeu-se que tinha ali pano para mangas. Tive sorte de não ir descascar batatas para a cozinha.
Valeu-me a presença do Zeca Ávila para ajudar a passar aqueles dias, metido naquele imenso convento e rodeado por gente que não me interessava conhecer. Para mais, um dos colegas de caserna, alfacinha mais palrador que um papagaio, apelidou-nos de “Os Belicas” – ele tinha um amigo micaelense que usava muito essa expressão e então resolveu baptizar os açorianos com essa alcunha. O Zeca, que tinha um sentido de humor muito fino, não se importava mas, a mim, só me apetecia era dar-lhe um pontapé mesmo nos países baixos.
Fiquei a conhecer pouco do monumento nacional que é o Convento de Mafra, bem como a sua igreja e biblioteca. Não tinha paciência para visitas turísticas. Contudo, um dia, num passeio com o Zeca, ao fim da tarde, pela praça principal da Vila, lembrei-me de procurar um taxista de que me havia falado o meu amigo Joaquim Maria da Costa. Vi um senhor bem posto, mesmo ao lado do seu bonito Mercedes e perguntei-lhe se me poderia indicar o Sr. António Alves. O homem olhou para mim, com um sorriso simpático e disse-me, de rompante, “O meu amigo é Terceirense, não é verdade?”. Era ele mesmo, o Sr. Alves que eu procurara, deu logo pelo meu sotaque de rabo-torto que se lhe tornara familiar na visita que fez à família do filho, sargento da Força Aérea na Base das Lajes. Encontrámo-nos outras vezes, ali na mesma praça. Era uma delícia conversar com ele, saber das suas caçadas pelos campos do Alentejo e das suas recordações dos dias que passou na Terceira. Quando vim a saber que a minha permanência em Mafra estava no fim, fui despedir-me dele.

 Convidou-me, a mim e ao Zeca, para ir-mos jantar a sua casa, onde fomos recebidos como se fossemos família pela sua esposa, Sra. Maria da Conceição, também pessoa extremamente simpática. Foi um repasto maravilhoso, para fazer esquecer o rancho insonso e desenxabido do quartel. O Sr. Alves tinha ido à caça dias antes e Dona Maria esmerou-se com um guisado de lebre que estava mesmo divinal. E o vinho tinto, bom e abundante... e o pão caseiro... e os figos, pretos e melados...
Faço o possível por me esquecer de pormenores relacionados com os dias de recruta, mas do jantar em casa dos senhores Alves, esse eu nunca mais vou esquecer. Nessa noite, com aquele tinto a dar-me uma força hercúlea, se o alfacinha que nos chamava “Belicas” me aparece pela frente, ele ia levar um tal pontapé que os países baixos lhe iam sair pelo buraco do umbigo fora.
Lincoln, Ca. Junho 28, 2016
João Bendito



Carlos Alberto Alves

Sobre o autor

Carlos Alberto Alves - Jornalista há mais de 50 anos com crónicas e reportagens na comunicação social desportiva e generalista. Redator do Portal Splish Splash e do site oficial da Confraria Cultural Brasil-Portugal. Colabora semanalmente no programa Rádio Face, da Rádio Ratel, dos Açores. Leia Mais sobre o autor...

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