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domingo, 27 de maio de 2018

Da Califórnia de João Bendito


UM VIOLINO PARA RONALDO

Ser pastor de gado lanígero é uma das profissões mais antigas do mundo. Desde que os humanos  começaram a viver em sociedades organizadas e a domesticar animais para uso próprio que as cabras, ovelhas, carneiros, lamas, búfalos, renas e outros semelhantes passaram a fazer parte integrante da vida dos povos nómadas e, mais tarde, das culturas sedentárias também.


O cuidar dos rebanhos, levá-los a pastar perto ou longe de casa, ordenhar as fêmeas e escolher os melhores machos para reprodução, a extração da lã e o aproveitamento das peles para vestuário, o consumo das carnes e leite para a alimentação... tudo foram técnicas que se foram aperfeiçoando através dos milénios. São raras as civilizações que não se dedicaram à pastorícia, umas em maior grau do que outras. E foram muitos os pastores que ficaram famosos pelos seus atos de bravura ou pelos seus ensinamentos filosóficos, desde algumas figuras bíblicas até ao nosso Viriato, o pastor-guerreiro lusitano que fez frente às incursões romanas na Ibéria de antigamente.
Aqui na América da era moderna o contributo dos pastores portugueses é sobejamente conhecido. Nas montanhas dos estados de Califórnia e Nevada, durante invernos rigorosos e verões escaldantes, ou nas mais amenas temperaturas dos vales e das planícies costeiras, muitos emigrantes açorianos passaram grande parte das suas vidas em total isolamento, longe da família e dependendo unicamente de si próprios para sobreviverem. Vivendo em cabanas improvisadas ou em grutas gélidas, os pastores tentavam amealhar o suficiente para também, um dia, terem os seus rebanhos ou poderem regressar às ilhas de origem. 
Outro dia conheci um pastor da era moderna. Já vos falei antes dos rebanhos de cabras e ovelhas que alguns municípios contratam para desbastar as ervas e o capim dos parques e zonas protegidas.
Aproveitando a presença dos animais mesmo aqui ao pé da porta, desci até junto da ribeira para tirar umas fotografias. Reparei então que o cabreiro estava a ter um pouco de dificuldade em fazê-los passar para a outra margem, onde ele já tinha levantado as vedações que limitam o livre movimento do rebanho. Quando deu por isso que eu falava espanhol, pediu-me que o ajudasse. E lá me armei em pastor! Imitando os assobios do meu mestre (e para divertimento da minha “patroa” que nos observava do nosso quintal), levantando os braços em movimentos  bruscos e até gritando com toda a força dos meus pulmões, sempre consegui ajudar o homem a levar a cabo a sua tarefa. Tive tempo também para apreciar as manobras do “Finch”, o pequeno cão preto e branco que, sem sequer ladrar nem morder as patas dos animais, os consegue conduzir de um lado para o outro só escutando os assobios e os sinais do pastor.
Chama-se Ronaldo, o meu novo amigo. É peruano e vem para a Califórnia geralmente por períodos de dois anos, contratado pela companhia “Goats R US “. E aqui é que está ainda um pouco a relação com os nossos antigos pastores imigrantes... No Peru deixa a mulher e a filha Maria, agora com dez anos. Vive sozinho numa pequena “camping trailer” que o patrão vai mudando conforme o rebanho se movimenta de pasto para pasto. Claro que as modernidades nas comunicações lhe permitem um contacto quase diário com a família através do telefone celular mas mesmo assim o Ronaldo sente-se isolado. Por companhia tem só o “Finch”, que lhe segue a sombra e os passos e uma velha bicicleta, que usa para ir aos mercados quando lhe falta alguma coisa das provisões que compra de duas em duas semanas. Durante o dia vigia o rebanho, assegura-se que não lhe falta água nas banheira que enche estendendo mangueiras ligadas a um terminal hidrante, repara as vedações e muda-as para os novos destinos.
No dia seguinte a que o conheci, pus-me de novo no quintal a observar o trabalho do Ronaldo e do “Finch”. Foi quando reparei que o nosso pastor tinha encontrado uma bola de futebol no meio do capim! Afinal, pensei, este faz jus ao nome de batismo, se calhar é habilidoso com a bola tal qual o nosso Ronaldo futebolista. Enganei-me redondamente! A “redondinha” que o cabreiro encontrou foi usada como mais uma ferramenta de trabalho, ele atirava a bola aos animais para os assustar e fazê-los correr para onde ele queria. 
Tenho aproveitado as pequenas conversas que mantenho com o Ronaldo para saber um pouco mais dos costumes e vivências do seu povo. A civilização Inca (o pastor é um Inca puro) sempre me fascinou. E ele faz o mesmo comigo, pergunta-me isto e aquilo, como aprendi a falar espanhol, se estou aqui legalmente, de que país vim, embora eu não tenha a certeza que ele sabe onde fica Portugal. Apercebi-me que o Ronaldo tem muita pena de não poder fazer com que a mulher e a filha venham para os Estados Unidos mas não as quer trazer “a salto”.
Numa das nossas conversas ele disse-me que desta última vez que veio para a Califórnia, não o deixaram embarcar com o seu violino. Não conseguiu entender a razão mas a verdade é que o violino ficou no Peru e ele sente a falta do instrumento, ajudava-o a passar o tempo.
Não lhe disse nada do meu plano mas nessa mesma noite meti-me à busca na internet. E encontrei muitos violinos, de todos os tamanhos e preços. Não percebo nada de instrumentos musicais mas lá escolhi um dos mais baratinhos e fiz a necessária encomenda. 
Ontem fui com o meu neto Dominic até ao “acampamento” do Ronaldo levar-lhe o violino. O pastor ficou surpreendido, pude até ver o brilho dos olhos dele refletidos no verniz do instrumento. “”I think he likes it””, comentou o Dominic.
Tenho a certeza que as noites do Ronaldo serão um pouco menos solitárias daqui para a frente.
Perguntei-lhe, então, que tinha feito com a bola que encontrou.
“Pois deixei-a aí num pasto, para que me servia?””
Este Ronaldo gosta mais de música do que de futebol!


Carlos Alberto Alves

Sobre o autor

Carlos Alberto Alves - Jornalista há mais de 50 anos com crónicas e reportagens na comunicação social desportiva e generalista. Redator do Portal Splish Splash e do site oficial da Confraria Cultural Brasil-Portugal. Colabora semanalmente no programa Rádio Face, da Rádio Ratel, dos Açores. Leia Mais sobre o autor...

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