HOMEM
VERTICAL
Os nossos
pequeninos Açores, bem sabemos os que de lá viemos, foram berço de grandes
homens. Claro que não me estou a referir à mera estatura física, onde os os do
Pico costumam sobressair. Refiro-me à grandiosidade humana de quem, através do
seu zelo em prol do bem comum, soube marcar toda uma geração pela positiva. Na
minha, desconheço quem não conheça o formidável contributo de um grande senhor
que acaba de nos deixar.
O senhor
doutor Artur Cunha de Oliveira foi uma pessoa extraordinária. Não é novidade,
creio eu. O seu palpável impacto nas gentes das nossas ilhas, ao longo do seu
rico percurso de vida, não se pode quantificar mas é fácil de qualificar como
deveras determinante no melhor que por aí nos une. Tive-o lá como pedagogo e cá
como amigo. Orgulha-me, por conseguinte, poder juntar-me aos que o vêem como
alguém que marcou uma diferença relevante à sua volta e mais além. Nas Ilhas ou
na diáspora, tanto no seio da elite intelectual como no coração do povo
trabalhador, não faltou quem o admirasse profundamente. O seu carisma e
simpatia pessoal não conhecia escalas sociais. Dedicou toda uma vida ao serviço
dos outros e os múltiplos elogios à sua pessoa, vindos dos diversos quadrantes
da sociedade onde se destacou, são o melhor testemunho da sua obra memorável,
sem dúvida.
Era
simpático mas não foi santo. Não há pessoas perfeitas neste mundo. Uma das
curiosas pechas que lhe apontavam era o arrojo de não ter papas na língua nem
ocultar a sua têmpera para dizer o que queria quando muito bem lhe apetecia, fosse
a quem fosse, sem medo da sua sombra. O então Bispo de Angra e Ilhas dos Açores
(D. “Manuel Quinteiro” – para os trocistas da populaça) provou uma amarga fatia
da sua conhecida coragem em desafiar casmurrices e contrassensos. Tal como o
pessoal da minha freguesia, certo dia, teve de prová-lo pelo lado avesso dos
seus dotes oratórios que não se limitavam a aspergir água benta nas palavrinhas
mansas da costume. Andavam os meus lindos Biscoitos pegados na feia parvoíce
dos partidos locais – o de baixo e o de cima – quando o senhor prior se lembrou
de encomendar ao Dr. Cunha um sermão para fazer o povo ver que aquilo não fazia
sentido. Houve quem não gostasse do raspanete, rotulando-o de recado mal dado.
Mas também não faltou quem se rendesse à sua eloquência, como foi o caso de
minha mãe, “...fala que é um céu aberto”; enquanto meu pai se limitou apenas à
lógica de dizer que “...ele não disse mentira nenhuma”. Então puto de 8 anos,
só me lembro de ter ficado pasmado ante aquela habilidade nata dum homem culto
da cidade em saber comunicar tão bem com o povo simples do monte.
Na crítica
idade dos 18, estudante sem curso nem emprego num Portugal politicamente à
deriva, pensando seriamente em emigrar, lá fui ter com o meu mentor em busca
dum conselho sensato. “É o melhor que fazes, Luciano.” As suas palavras, cara a
cara e olhos nos olhos, deram-me a gota de alento que procurava. E assim vim,
por aí fora, com os meus sonhos à flor da pele. Não pensava contudo
reencontrá-lo cá, muito menos como ator e eu armado em seu ensaiador. Foi uma
das experiências mais enriquecedoras da minha vida de jovem entusiasta pelas
lides teatrais ao vê-lo aceder e integrar-se, sempre sorridente, no nosso
projeto comunitário.
Ia a
caminho dos 28 e tinha entre mãos a peça, “Alguém Terá De Morrer”, de Luís
Francisco Rebelo, com um dos papeis a enquadrar-se perfeitamente na pessoa de
Artur Cunha de Oliveira. “Ó Sr. Dr., não sei se isto vai funcionar comigo a
servir-lhe de ensaiador...” A sua pronta intervenção pôs-me logo à vontade. “Claro
que vai mas para que tal aconteça tens que pôr já de lado o Senhor Doutor. Para
ti e para o grupo, agora sou o Artur. Que tal?” Tal estava eu bem longe de
imaginar. Por isso, muito me apraz agora recordar esses saudosos ensaios, os
amenos convívios e todos aqueles divertidos espetáculos que nos estreitaram a
amizade ao percorrermos esta imensa Califórnia de norte a sul.
Era assim
o nosso amigo Artur, esse excelentíssimo Senhor Doutor (com D maiúsculo,
note-se) que tão bem sabia descer do seu subido pedestal erudito para lidar, de
jeito salutar, com todos quantos o admiraram dos dois lados do oceano sempre a
banhar-nos esta nostalgia imensa. Porque Artur Cunha de Oliveira teve essa
dimensão transatlântica. Nasceu cá, na Costa Leste, cresceu e formou-se lá, mas
aqui voltou, à Costa Oeste, já figura de prôa evidenciando-se por algum tempo
como timoneiro destacado do nosso Tribuna Portuguesa. Foi uma fase algo tensa,
de alguma controvérsia até, onde chocaram egos e teimosias locais mas que, de
forma alguma, belisca o balanço altamente positivo dum homem vertical naquilo
que foi e solidário no muito que fez em prol dos demais. Não lhe bastava a
conversa fiada ou paleio oco da oratória inconsequente. Era pessoa de ação
incisiva, eficaz. “Ó Luciano, já que nos envias os teus artigos de promoção
teatral para o Tribuna, porque não te comprometes a escrever periodicamente uma
coluna, ao teu estilo, para publicarmos cá?” O desafio foi-me lançado nestes
precisos termos, já lá vão três longas décadas. Comprometi-me e nunca me
arrependi das muitas horas, no decorrer dos anos, dedicadas ao cultivo do meu
idioma de berço cá na estranja aonde teimo em adubar as minhas raízes
culturais.
Sem mais,
meu caro Artur – ilustríssimo Dr. Cunha de Oliveira – dedico-te esta singela crónica
redigida com profundo afeto e eterna gratidão.
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