Onde acaba a fisiologia, não terminam as questões
As Ciências e a Filosofia herdaram das mitologias e das religiões o nobre afã de procurar o princípio de todas as coisas, de encontrar a causa das causas do homem, da vida, da sociedade, da história, do universo, etc. As ciências delimitando e aprofundando uma parcela da realidade (tendem cada vez mais à especialização); a filosofia, preocupando-se com o esclarecimento da totalidade e das razões que a fundamentam e explicam. As ciências, pela sua específica índole, tratam de factos, não de todos os valores e por isso a filosofia (que os pensa a todos) é uma atitude, um pensar permanente, um conhecimento instituinte que não cessa de questionar o saber instituído. Segundo Kant (1724-1804): “não há filosofia que se possa aprender, só se pode aprender a filosofar”. Não se trata portanto de um saber abstrato, à margem da vida. Bem pelo contrário: não há transformação material, social que a não suponha, digamos mesmo: que dela não precise. Enfim: filosofar é dar sentido à experiência, é radicar a prática nos objetivos últimos da existência humana.
Recordo aqui o Husserl (1859-1938) no seu livro A Crise das Ciências Europeias e a Fenomenologia Transcendental. Para o pai da fenomenologia, a crise das ciências traduz a cisão entre as ciências e a vida, entre os factos científicos e os valores que a ciência despreza. Que a metafísica clássica foi demasiado ingénua ou dogmática: trata-se de uma verdade inatacável. Como inatacável nos parece que uma ciência sem valores, uma tecnologia sem princípios podem permitir tudo, incluindo os crimes mais abomináveis. Não esqueço, neste momento, a crítica de Habermas, na sua obra Conhecimento e Interesse, à positividade científica que dá lugar, quase sempre, a um absentismo ideológico, que vê como verdadeiramente inútil o quadro transcendental onde encontram sentido os enunciados científicos.
Condena ainda Habermas a epistemologia analítica, dado que ela pretende, em nome de um conceito unitário de ciência, ignorar as características próprias das ciências hermenêutico-humanas. Onde o Desporto necessariamente se integra. Rejeito que o Desporto, como ciência (para mim, um dos sub-sistemas do sistema “motricidade humana”) constitua um caso particular de carência de objeto de estudo – que é o ser humano no movimento intencional e em equipa da transcendência (ou superação). O Desporto é de facto ciência mas, como humana que é, não pode constituir-se em fim absoluto, quero eu dizer: em ciência sem consciência. Não há ciência que possa explicar a vida como aventura existencial, nem dar resposta cabal à profunda radicalidade das mais sérias interrogações humanas, como as questões medularmente axiológicas, por exemplo. A ciência é um saber, não é uma sabedoria, numa palavra só: não é filosofia, nem religião. Passa-se com a ciência algo de semelhante ao que Hegel (1770-1831) concluía na maneira de encarar o universal.
Para o autor da Ciência da Lógica, uma tese pode considerar-se, de modo concreto, ou abstrato. “Tomada abstratamente, uma tese aparece recortada (isolada) não apenas do contexto onde se forma e desenvolve, da problemática em cujo horizonte se determina, como também do próprio processo no decorrer do qual se constitui e dos conteúdos mediatos a que de um modo sintético se refere. Tomada abstratamente, uma tese é feita valer em si e por si. Vista numa perspectiva de concreção, uma tese é um sinal e um resumo de uma reflexão que está em curso” (José Barata-Moura, Actas do I Congresso Luso-Brasileiro de Filosofia) – uma reflexão que é ciência e filosofia e política e religião. A filosofia não pode abandonar o horizonte do real, ou seja, precisa do conhecimento científico. No entanto, a ciência não se compreende humanamente, sem o contributo da filosofia e, em condições determinadas, da religião. O fisiologismo em que descambaram alguns cursos superiores de Desporto (e até alguns cursos de treinadores) esquece, demasiadas vezes, o que no praticante desportivo existe de psicológico, de intelectual, de moral. No ser humano, não há fisiologia fora da complexidade humana (corpo, espírito, emoções, natureza, sociedade, cultura).
No quadro da unidade dialética dos elementos que constituem a complexidade humana, uma vitória ou uma derrota, na competição desportiva, nem sempre são dedutíveis exclusivamente da fisiologia. “Janis Schonfeld designer de interiores da Califórnia, participou num teste clínico com Effexor, em 1997, e ficou estupefacta ao descobrir que tinha andado a tomar placebo. Não só os comprimidos a tinham aliviado da depressão que a afligia há trinta anos como os exames radiológicos que fez ao cérebro ao longo do estudo revelaram que a actividade do seu córtex pré-frontal melhorara substancialmente (…). As melhoras não se registraram só na cabeça. Quando a mente muda, toda a nossa biologia é afectada. Schonfeld sentiu inclusivamente náuseas, um efeito secundário conhecido do Effexor. Ela é um caso paradigmático dos pacientes que melhoram com um tratamento placebo e depois descobrem que não andaram a tomar o verdadeiro medicamento. Ficou até convencida de que os médicos tinham cometido um erro, ao rotularem os frascos, dado que ela sabia que tomara mesmo o medicamento” (Bruce H. Lipton,. A Biologia da Crença, Sinais de Fogo, 2015, p. 168).
E continua o autor deste livro, autoridade internacionalmente reconhecida, na relação entre biologia e espiritualidade: ”Aprender a controlar a mente, para promover o crescimento, é o segredo da vida (…). Não são os nossos genes, mas as nossas crenças, que controlam a nossa vida, ó homens de pouca fé!” (p. 171). Todo o pensar aponta tendencialmente para uma fundamentação. Perguntar é, quase sempre, um dos momentos da procura da fundamentação.
No Desporto, o fundamento não é só a fisiologia, nem a psicologia, nem o ato médico, nem a técnica, nem a tática – o fundamento do Desporto é a complexidade que constitui o ser humano. Por isso, há que repensar os métodos de treino. Nas ciências da natureza há um consenso, de muitos anos, sobre os métodos, o que não acontece nas ciências hermenêutico-humanas, onde o Desporto inevitavelmente se situa. É conhecida a afirmação de Martin Heidegger: “nenhuma época acumulou, sobre o homem, conhecimentos tão numerosos e tão diversos, quanto a nossa. Nenhuma época conseguiu apresentar um saber, sobre o homem, de forma tão pronta e tão facilmente acessível. E afinal nenhuma época soube tão pouco acerca do homem”. Um ponto me parece incontroverso: é na transcendência (física, intelectual e ética) que o ser humano sente as suas verdadeiras dimensões; é na transcendência que o ser humano entende que não é reflexo da história, mas projeto de um mundo novo; é na transcendência que o ser humano compreende que viver é uma experiência constante do divino, pela capacidade de desfatalizar a própria história.
Nada, nenhum facto, nenhum acontecimento podem significar, para um ser capaz de transcender e transcender-se, o fim da história. Porque estou vivo, serei, em todas as circunstâncias, uma tarefa a realizar. A ressurreição de Jesus Cristo (que festejamos nesta semana) assim mo diz, assim mo ensina. E, porque é movimento intencional e em grupo da transcendência, o Desporto não é ciência tão-só, mas sabedoria onde a transcendência (a superação) é o sentido. Como na vida…
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