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quinta-feira, 27 de dezembro de 2018

Da Califórnia de LUCIANO CARDOSO


MIMO DE BOAS FESTAS

2018 está a dar as últimas. Oxalá sejam como as primeiras. Foram ótimas as minhas impressões iniciais deste ano. Janeiro teve a cortesia de me brindar com um sonho “fantabuloso” logo na sua primeira madrugada. Foi dos tais que não se esquecem por nos andarem muito perto dos factos feitos memórias doces. Esfalfado de brincar umas boas horas com o meu neto, e após nos despedirmos do ano velho com beijinhos açucarados, adormeci feliz da vida. A primeira manhã do primeiro mês oferece-nos repetidamente essa jovial sensação de esperança que buscamos ano após ano. Tudo começa, pouco antes, com a magia do Natal.
O meu aprazível sonho transportou-me à meninice e ao lugar onde nasci. Fazia inverno na Ilha. Nas ilhas, os invernos nunca mandam recados por ninguém. Descarregam a sua fúria como querem e entendem quando bem lhes apetece. Já era assim há meio século, quando o progresso meteorológico ainda não havia chegado ao meio rural e o povo prevenia-se pelos sinais que a atmosfera lhes enviava à distância. “O nosso tempo mudou-se”, avisou meu avô de olhos postos no céu a escurecer lentamente antes da noite chegar. “Vamos ter temporal.” Disse aquilo ao ver a tarde forrar-se de nuvens negras a avolumarem-se do mar para terra com o vento varrendo raivoso tudo o que lhe aparecia pela frente. “Vai ser um Natal alagado.”
Os sinos tocaram uma hora antes da Missa do Galo. A igreja ficava ainda a uns bons trinta minutos percorridos a pé. “Tratem de se arranjar bem agasalhados porque não é a primeira vez que o tempo mude de ideias.” A ideia de minha mãe era ter-nos vestidos e prontos a andar mal a chuva desse chance. Era mulher de fé ardente nas graças do Menino e com especial devoção pelo mimo do “beija-pé”, cerimónia litúrgica que não gostava de perder. “Meu querido Menino Jesus, importas-te de ir pedir a São Pedro que acabe de lavar o sobrado depois de virmos da missa?” A sua sentida prece depressa subiu aos céus donde a chuva caía a potes naquela tempestuosa noite de consoada.
Meu pai era crente e temente a Deus, mas temia também o furor da invernia aquando cismada em castigar as nossas ilhas sem dó nem piedade. “A pé, daqui até ao Bairro de São Pedro com o nosso tempo fechado d’água assim? Só mesmo gente doida.” Era uma desculpa insuficiente para calar a sua piedosa cara-metade. “Se se tratasse de ir para o salão adorar o Santo Entrudo, já tinhas pegado e andado sem abrir bico.” O recado escaldou os ouvidos ao nosso chefe de família, mas não lhe furtou a fala. “Ó mulher, toma tino. Achas coisa de gente discreta pôr esta criança no caminho a uma hora destas com o tempo virado da banda do avesso?” Desejosa de levar pela mão o seu menino Luciano a beijar o pé do Menino Jesus, minha mãe arregalou-lhe os olhos e abriu a porta do quintal, pasmando ao ver que a chuva grossa decidira mudar de rumo. Fez logo o sinal da cruz torcendo os olhos para o marido. “Não me digas que nunca saíste de casa em noite de Carnaval com tempo pior do que este?” Não sendo pessoa de se calar facilmente, meu pai perdeu o pio naquele instante em que os sinos repicaram de novo com os meus olhos a brilharem de regozijo. Três meses depois de dar entrada na escola primária e quatro após fazer a primeira comunhão, assistia à minha primeira Missa do Galo.
A igreja estava à cunha. O tempo dera um jeito e o povo acorreu em massa. Nunca tinha visto a pequenina imagem do Menino beijada vezes sem fim. Comovi-me com o afeto ternurento daquele gesto delicado. A boa gente do meu lugar sentia emanar daquele bebé despido ao frio da noite um calor genuíno e consolante. Via no príncipe do presépio o símbolo da esperança que nos acaricia todos os anos nesta linda quadra em que renovamos a nossa fé numa humanidade mais fraterna e solidária. Foi então, lembro-me bem, que comecei a alimentar esse meu dócil sonho dum desejado mundo melhor. Ingénuo, abracei-o como menino, moço e jovem sonhador ilhéu. Fui mesmo estudar convencido que a utopia não morava assim tão longe da realidade. Até que imigrei e acordei para esta ridícula incapacidade humana de convivermos tratando-nos com o respeito mútuo que merecemos uns dos outros. Que tremendo balde de água fria!
“Bem te avisei que o tempo não estava seguro”, meu pai repreendeu minha mãe, ao regressarmos a casa da igreja todos alagados pingando. Tamanha molha tinha sido aquela. São Pedro não esperara o suficiente e uma súbita malha d’água apanhou-nos desprevenidos a meio do caminho sem lugar para nos abrigarmos. “Quando é que vais aprender a dar-me ouvidos em vez de me dares com os pés, minha cara perfeita?” Fazendo de contas que não ouviu, minha mãe lá foi disfarçando o sorriso enquanto fervia água ao lume para beber um chazinho de funcho antes do São Nicolau aparecer no arco da chaminé. Lá estava o meu sapatinho junto ao do meu irmãozinho que ficara em casa ao cuidado de meu avô. Ambos dormiam a bom dormir. Cansado, mas consolado, também não demorei a pegar no sono.
Hoje, cinquenta e tal anos depois, acordo encantado da vida por poder ainda abrir esta prenda e saborear outro Natal na companhia do meu neto, o nosso Menino Jesus. Não gosta que lhe beijemos o pé. Sente cócegas e já me deixou o aviso com a unha do seu polegar na ponta do meu nariz. Um lindo mimo de Boas Festas.
Carlos Alberto Alves

Sobre o autor

Carlos Alberto Alves - Jornalista há mais de 50 anos com crónicas e reportagens na comunicação social desportiva e generalista. Redator do Portal Splish Splash e do site oficial da Confraria Cultural Brasil-Portugal. Colabora semanalmente no programa Rádio Face, da Rádio Ratel, dos Açores. Leia Mais sobre o autor...

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