O ciclone e a ilha, de Fraga Goulart
O faialense Flávio Miguel Fraga da Silva é um papa-concursos. Após ter vencido o 1º prémio literário do Concurso LABJOVEM com o conto A Besta (Associação Cultural Burra de Milho, Direção Regional da Cultura, 2012), então assinado por Fraga da Silva, o agora Fraga Goulart reincide, pois que venceu o 1º prémio do Concurso LABJOVEM com O ciclone e a ilha (Coleção de Literatura LABJOVEM, Associação Cultural Burra de Milho, Direção Regional da Cultura, 2016).
Trata-se de uma bem carpinteirada novela passional que nos fala do emaranhado imprevisível das paixões (o “ciclone”) e nos dá um retrato magistral de uma personagem feminina de grande riqueza humana e fundura psicológica: Núria, jovem açoriana em início de carreira na área da arquitectura.
Tendo Lisboa e a ilha do Faial como lugares da ação, a história é-nos contada por um narrador-protagonista, aluno de Estudos Cinematográficos que, por isso mesmo, escreve como se tivesse uma câmara de vídeo colocada em cima do ombro, dando à narrativa enfocamento visual, revelando grande poder de observação, extraordinária pormenorização (“o olho treinado para os pormenores”, pág. 32), diálogos bem construídos, e uma muito atenta observação do humano.
Humaníssimo é, de facto, o olhar que o narrador lança sobre Núria (isto é, desvenda a sua alma), que conhece numa festa de Halloween, numa altura em que ele é devasso, pois que, na capital portuguesa, a sua vida sentimental é recheada de aventuras dissolutas. Dissimulando as emoções, ele desenvolverá uma secreta, intensa e inquietante paixão por Núria. Mas os receios infundados e uma tibieza mal disfarçada impedem-no de avançar em termos de um relacionamento sexual. Núria é a polarização do desejo, o amor pressentido e inconfessado, o prazer não consumido, a relação erótica não consumada. Mulher incómoda e incomodada, Núria é enigmática e complexa, sensível e insatisfeita, desiludida e fugidia, com indícios de bipolaridade.
Núria e o narrador vivem uma relação ao mesmo tempo amigável e conturbada e, bem vistas as coisas, as 212 páginas do livro são isso mesmo: um cântico de amizade, amor e paixão.
Fixando residência na ilha do Faial, vivendo, primeiro, em casas separadas e, depois, partilhando a mesma habitação, o narrador e Núria estreitam e aprofundam o seu universo afectivo, e quando o (inevitável) acto sexual finalmente acontece, o leitor é levado a pensar que o livro terá como remate a felicidade de um happy ending. Nada mais falso. Uma série de acontecimentos, desaires, peripécias e sobressaltos (com a Justiça da Noite a rondar por perto), a que se junta uma enorme frustração profissional (Mário Almirante, homem influente, boicota-lhe um projeto arquitectónico em que vinha trabalhando no Faial) agravam o estado mental de Núria. É-lhe diagnosticado “esquizofrenia indiferenciada” e, mais tarde, “distúrbio polar”. Ela enche-se de fármacos, tem comportamentos estranhíssimos e acaba por regressar a Lisboa a fim de receber tratamentos no Hospital Júlio de Matos. Não cometerei a indelicadeza de contar o fim da história. O que importa reter é que por via do estado mental de Núria, a narrativa de O ciclone e a ilha vai ganhando dimensões do fantástico e devaneios a roçar o onírico.
Nesta matéria, Fraga Goulart tem mão segura na escrita e demonstra uma surpreendente maturidade literária na condução da história, coesa e consistente, construída imagem a imagem, plano a plano, enquadramento a enquadramento, como se de uma montagem se tratasse, ele que domina as técnicas e os dispositivos cinematográficos do flashback e do raccord.
O ciclone e a ilha é, essencialmente, um livro sobre a condição humana. Está muito bem escrito e deve merecer a nossa melhor atenção
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