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quinta-feira, 31 de janeiro de 2019

Da Califórnia de Luciano Cardoso


Cro’nicaNaCama

Se há lugar que previlegio neste mundo, é a santa cama onde durmo. E ressono cada vez melhor, lembrou-me anteontem a minha doce cara-metade. Lembrei-me então logo de alinhavar este apontamento com o pensamento preso nas noites sem fim, inúmeras horas ao longo de trinta e cinco anos juntinhos no aconchego do mesmo leito. Sabe tão bem. Então, de inverno... nem se fala. 
Falava há tempos com certo sujeito da nossa terra, a quem a vida não corria lá muito bem e veio por aí fora aos baldões a ver se ela lhe correria um pouco melhor. Não tem tido grande sorte. Para cúmulo mesmo do azar, já se viu até forçado a dormir ao relento, debaixo da ponte dum ‘freeway’ com o seu fiel cachorro de estimação a servir-lhe de travesseiro. Na ilha, costumava apanhar lapas para sobreviver. Cá, continua a apanhar desgostos, para não variar. Excuso detalhar aqui a sua história para ainda não me chamarem mentiroso mas posso apenas acrescentar que tanto dormitou ao ar livre de muitas noites frias como dormiu agasalhado nos braços sedutores de algumas mulheres bem quentes. Tão ‘calientes’, dizia-me, que o fizeram ir perder o sono na cadeia por mais do que uma vez. 
Cabecinha dura e meia oca, já teve o descaramento de me querer convencer serem mesmo azares dos diabos todas as suas feias cabeçadas até agora dadas à toa. “Uma delas...”, lamentava-me, “...uma dessas gajas malucas pariu-me uma filhinha que não tenho autorização de ver. Eh pá, não acreditas qu’a puta tá com oitro e agora quer-se vingar de mim?” Claro que o acredito. Ao menos soube engatar uma velha americana “com uma cama que eu só queria que tu visses – eh pá, é um luxo. Cobertores fofos e colchas macias que consola por dentro e por fora. P’ra quem já dormiu em colchões de folha de milho num casebre com buracos no teto... eh home, seja tudo p’las alminhas.” 
Há quem apelide de desgraçado este nosso amigo. Eu não iria por aí. Diria só que se trata duma alma sã, sem a dose precisa de sorte a ajudar nos momentos certos. E são tantos como ele, por esta América de sonho, a curtirem os seus rudes pesadelos. A vida é dura nesta terra prometida só a alguns e não se compadece com os que moram na mó de baixo. Durmo há trinta e tal anos no andar de cima onde os sonhos até viram cor de rosa quando os pinta a nostalgia. O desta noite passada brindou-me com a deliciosa memória de acordar mijadinho em colchão de folha de milho, aos cinco anos de idade, entre minha prima e minha tia num longínquo dia de matança. Queriam o menino a pernoitar com elas mas arrependeram-se tarde demais, coitadinhas. 
Coisa de que ainda nunca nos arrependemos, eu e a minha santa patroa, cá no conforto do nosso lar, é a de permitirmos ao nosso netinho de ano e meio o melado prazer de adormecer no meio dos avós. Ele consola-se e a gente derrete-se. Não é hábito aconselhável para todas as noites mas, de quando em vez, cai-nos às mil maravilhas. Até a cadelinha fica maravilhada a dormir aos nossos pés. Adora o miúdo que, por sua vez, não esconde a sua afeição pelo bicho com quem brinca até o sono lhe acenar. E assim, quando calha, cá dormimos juntinhos na nossa caminha radiante por nos proporcionar todas estas alegrias genuínas e outros prazeres singulares, como este meio estranho de ainda estar aqui deitado de papo ao ar a rabiscar esta crónica sem pés nem cabeça. 
A minha, já calvinha devido aos anos, noto-a cada vez com maior dificuldade em desapegar-se do travesseiro que lhe suaviza o repouso nas frias noites de inverno. Quem o tem aquecido à cabeceira da cama num quarto protegido contra a friúra noturna não faz ideia o que é desejá-lo lá fora onde o ar gela e o chão castiga. O corpo dói. A alma enferma. E o raciocínio que resta ao cérebro já meio congelado... só murmura – “porquê...?” Quem ainda tem alguma consciência acesa aquela hora, interpela-se – “Não seremos, por acaso, todos filhos da mesma digna condição humana?” 
Ao apagar o candeeiro, olho o meu neto adormecido no quentinho que nos conforta e temo por ele os tempestuosos invernos que o aguardam. Este mundo está cada vez mais cão, a sociedade cada vez mais cruel. Ou pode ser apenas impressão minha mas noto muitas mais pessoas cada vez mais frias. Afago a cadelinha que parece perceber-me ao fitar-me com aquele seu olhar reconhecido. E percebo-lhe a gratidão (não é da sua culpa, em pleno século XXI, homens ainda a viverem como cães e que muitos cães vivam melhor que muitos homens). A minha mulher é que ainda não percebeu porque tinha eu que escrever esta crónica na cama.
Carlos Alberto Alves

Sobre o autor

Carlos Alberto Alves - Jornalista há mais de 50 anos com crónicas e reportagens na comunicação social desportiva e generalista. Redator do Portal Splish Splash e do site oficial da Confraria Cultural Brasil-Portugal. Colabora semanalmente no programa Rádio Face, da Rádio Ratel, dos Açores. Leia Mais sobre o autor...

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