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quarta-feira, 13 de fevereiro de 2019

Da Califórnia de João Bendito


OS COICES DA “BURRA VELHA””

A entrada do “Café Rato”, na Calheta, em Santa Cruz da Graciosa, era lugar de convívio de pescadores, camponeses, baleeiros e outros trabalhadores.
Nas tardes lentas e cálidas de verão, o pessoal juntava-se mesmo à porta, traziam do interior, com consentimento do proprietário, alguns dos banquinhos de madeira e para ali estavam, a ver passar as horas. Discutiam de tudo, desde as notícias mais recentes do burgo, até às sempre litigiosas novidades do futebol, passando pelos temas que lhes diziam mais respeito... as caçadas às baleias, as Festas de Santo Cristo, que estavam à porta, os preços que a Adega Cooperativa ia praticar este ano e por aí além.
Alguns eram melhores ouvintes do que palradores. É uma arte antiga, saber ouvir e calar. Ninguém o fazia melhor do que o Ti João «das caninhas», um simpático velhote a quem a diabetes tinha roubado uma perna. Sempre com um sorriso nos olhos, o Ti João munia-se da sua bem afiada navalhinha e entretinha-se a cortar pedaços de canas e transformava-os nos pequenos palitos que o Nelson «Rato», o dono do Café, usava como cabos para os gelados que fazia à base de refresco Royal. Uma delícia para a rapaziada da Calheta...
Mesmo em frente à porta do Café desembocava a Rua do Galeão. Seria uma rua como outra qualquer se não fosse pelas pessoas que ali residiam, um pequeno mundo dentro da família que era a população da Vila de Santa Cruz. Ti João também ali vivia, era até vizinho do Alexandre «Tiriri», outra simpatia de pessoa. Alexandre era cego de nascença mas nunca se perdia pelo caminho e nem sequer tropeçava nas pedras da calçada, sabia chegar à porta de sua casa sem necessitar da ajuda de ninguém. Exímio tocador de viola, o «Tiriri» consolava-se a conversar com o meu avô «Rato» e com o António «Traquitana», também ele morador na Rua do Galeão, mesmo ao lado da cocheira onde descansava o grande cavalo que lhe puxava a sua mercearia ambulante.
António «Traquitana» era bom homem e tinha um fino sentido de humor, arma que esgrimia com destreza nas conversas com o «Rato» e com o «Tiriri», levando mesmo este a admitir que “O nosso amigo António tem uma língua de prata”. João «das caninhas» movia a cabeça em sinal de aprovação.
Certa tarde, a tia Amélia «Rabiça» veio avisar o meu avô que algo de estranho se passava na cocheira da «Burra Velha». Era mesmo ali a meio da Rua do Galeão, um pouco acima da casa do Francisco «Pelicates», que ficava a casinha onde o avô Guilherme guardava a sua companheira de andanças e de trabalho, a «Burra Velha», assim designada porque, embora alaricada e prezada, já estava entradota na idade e não gostava de partilhar a “casa” que sempre tinha sido dela com a nova aquisição do avô, a jovem e esbelta «Burra Nova» . Coisas de burras...
O avô Guilherme ficou intrigado com a conversa da «Rabiça» e decidiu ir investigar o que se passava. Para tal, chamou o Alberto «do Ângelo», que estava a lavar pipas no granel, para o acompanhar. Não teve sorte, contudo. O Alberto recusou-se a cumprir as ordens do patrão e explicou, a manear a cabeça: “Ó sô Guilherme, ê na vou! Outro dia, quando me mandaste lá tratá delas, o diaxo da «Burra Velha» atirou-me um coice disparatade! Sê na me desvi a tempo, ela partia-me uma perna! Má fogo a abrace, escumungada.” O velho «Rato» teve que ir sozinho apaziguar as burras. Descobriu que a desalmada da velhota tinha aberto a cancela do curral da noviça e andava atrás dela, a zurrar estridentemente e a ver se lhe mordia as orelhas.
Resolvido o problema, o avô voltou ao granel e confrontou o Alberto. “Tens que aprender a lidar com as burras, Alberto.” Perante o olhar espantado do moço, o ancião continuou: “Aprendi com o meu pai que, se um dia um burro te atira um coice, a culpa é do burro, por vezes eles são malinos; mas, se no outro dia o burro faz a mesma coisa, a culpa é tua, que não aprendeste a lição da primeira vez e não te puseste mais ao largo.”
Felizmente a briga das burras não deu muito que falar, não perturbou a pacatez da Rua do Galeão nem incomodou a vida das pessoas. Nessa tarde, como de costume, o «Traquitana» voltou da sua lide com a carroça cheia de galinhas que trocou, com as gentes das freguesias, por açúcar e petróleo e o «Tiriri», em vez de vir para o Café, deixou-se ficar sentado à porta de casa, a dedilhar umas modinhas na sua viola. Amélia «Rabiça» nem se deu ao trabalho de contar o acontecido ao marido, o Ti Chico «Buzina», não valia a pena. O alarido que a «Burra Velha» alevantou para que lhe dessem atenção, não surtiu efeito, ninguém lhe ligou pevide e só serviu para que o Alberto aprendesse a desviar-se dos coices.
“Isso mesmo, Alberto”, consolou-o o Ti João das «Caninhas», “quanto mais longe das burras melhor...”
Lincoln, Ca. Fev.13, 2019
João Bendito
Carlos Alberto Alves

Sobre o autor

Carlos Alberto Alves - Jornalista há mais de 50 anos com crónicas e reportagens na comunicação social desportiva e generalista. Redator do Portal Splish Splash e do site oficial da Confraria Cultural Brasil-Portugal. Colabora semanalmente no programa Rádio Face, da Rádio Ratel, dos Açores. Leia Mais sobre o autor...

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