JOSE’ d’ARROCHELA
Nasci numa daquelas nossas pequeninas ilhas de bruma que grande parte do globo desconhece. Quem lá não nasceu, ou delas não faz ideia, tem que ser bom em Geografia para topá-las no mapa-mundo a olho nu. Eu não era muito mau mas perdi-lhe o gosto logo na escola primária. Tudo talvez por causa do meu azedo professor da terceira classe que tinha a mania de abusar da disciplina à moda antiga. Quando me chamou ao quadro, com a ponta do vime apontada ao mapa a pedir-me que lhe indicasse o nome dum rio angolano que nunca cheguei a decorar, parece que ainda sinto os suores frios a pingarem-me pela espinha abaixo. É que, resposta falhada e o vime voava do mapa às ilhargas em tempo nenhum. Angola era nossa, dizia-se nesse tempo de duras aprendizagens, mas eu estava-me marimbando para os seus rios, rotas ou redes rodoviárias. Pudera não. Tudo tínhamos que aprender de cor. Como o tal enclave de Cabinda, lembram-se? Encravado naquela colonizada parcela do nosso extinto império em África, dava-me voltas ao miolo. Encaixado na costa ocidental africana, obedecia à bandeira portuguesa mas servia a economia americana para desespero da russa também inquieta para lhe sugar o precioso petróleo. Afinal, bem feitas as contas de sumir, alguém saberá ao certo a quem pertencia então aquele minúsculo paraíso petrolífero…? Desconfio igualmente que, em paralelo distinto, alguém saiba bem do específico contexto geográfico abraçando os Biscoitos aos Altares lá no norte da minha mimosa Ilha Lilás. Na fronteira de ambas as freguesias encaixa-se um enclave ainda hoje difícil de se determinar a quem rigorosamente pertence. A Arrochela nunca terá a cobiça mundial de Cabinda mas tem o fascínio local cabido cá só dentro de nós. Já restam poucos os que ainda lhe brilham os olhos húmidos do saudosismo atado àquele lugarinho único que os viu nascer e acolheu quase à beira da ribeira. Fiz-me rapazola na companhia dum grupo de amigos porreirinhos. Era assim que gostávamos de pensar uns dos outros, cada qual a morar no seu recanto dos Biscoitos. Só o Hélio (José Martins Pimentel) residia na Arrochela. Todos tínhamos a mania de arranharmos umas quadras mas nenhum rimava como ele. Era um repentista castiço já naquela tenra idade. Cresceu e amadureceu essa fama entre a malta amiga e não admira ainda hoje ser conhecido pelo Hélio Charrua, apesar de nunca se ter aventurado nos públicos palcos das cantigas ao desafio. Para mim, era e continua a ser apenas o meu amigo José da Arrochela, filho do Ti Manuel Traça e da Tia Almedina Bráz. Com as vindimas, setembro trazia aos Biscoitos o vinho novo e as festas da freguesia multiplicavam os mata-bichos brindados com umas rimas improvisadas como calhava em casa dos amigos. A pinga em casa do Ti Manel Traça tinha um sabor especial no dia dos toiros da Rua dos Boiões (Baiães, na boca do povo). Era um caminho de terra batida e pedra esbagaçada como a ribeira ali ao lado. Raramente se lhe via correr água das chuvas mas, naquele dia de típica toirada à corda, corria-lhe animação por todos os lados. Foi lá também que me correu o primeiro gole de cerveja pela goela abaixo. Estava na idade de me crescer o bigode, quando um amigo radicado na América das abundâncias (“com tudo muito much better – yú nó – até o gosto agreste da ‘bia’ muito mais melhor c’ó do nosso vinho de cheiro”), lá no meio do arraial, disse-me que tinha de me fazer homenzinho e meteu-me uma Cuca na mão. Era a tal afamada cerveja angolana com muita venda quando fresquinha. Morna, porém, como foi o caso naquela tarde de intenso calor e já sem gelo nas tascas, só provando. Bebi um fino gole, fiz uma feia careta e, enquanto o meu amigo dava conversa ao seu amigo, deslizei a garrafa por detrás das costas e despejei o resto na ribeira. “Que tal?” Perguntou-me ele antes de lhe satisfazer a curiosidade. “Não viste? Já andou.” E mostrei-lhe a garrafinha vazia. Com o olho manhoso de quem fez de contas nada ter visto, o nosso amigo José da Arrochela riu-se e arrefiou-me dando-me a entender um “não te esqueças que, depois dos toiros, temos vinho novo lá em casa.” Para chegarmos à sua moradia, não havia outra maneira senão atravessarmos mesmo aquela ribeira da Pamplona, na pontinha oeste dos Biscoitos. E se déssemos uns passos mais adiante, não era preciso andar muito para chegarmos à ribeira da Lapa, pertença dos Altares. No meio de ambas situava-se a Arrochela. “Entrem! Entrem!” O Ti Manel Traça adorava oferecer a mesa da sua cozinha aos amigos do seu filho. “Almedina, enche-me esses copos.” Inspirávamo-nos naquela genuína hospitalidade e lá matávamos o bicho a gosto com umas rimas alegres de rapazinhos felizes da vida pela camaradagem que sabia mesmo a lapas frescas com pão de milho e massa sovada da gente se consolar todos. Passado meio século, geograficamente espalhados agora por esse mundo fora, apraz-nos saborear os elos finos duma amizade que se colou à saudade. Depois de crescermos na Terceira e estudarmos em São Miguel, embarquei para a Califórnia e o Hélio para o Toronto. A vida dá cambalhotas, prega-nos partidas e a gente aprende à nossa custa coisas que os reles vimes dos tais professores mais azedos jamais algum dia nos poderiam ensinar. Parece-me que o meu amigo José d’Árrochela já sofreu os seus bons amargos de boca mas a doçura destas memórias ajuda-nos a perspetivar que esta vida são dois dias e tristezas não pagam dívidas. Devia-me ele duas ou três quadras soltas quando, mais de quarenta anos depois, nos reencontrámos no Facebook. E lá trocámos algumas impressões que nos levaram à velha Rua dos Boiões, agora alcatroada e com a ribeira beneficiando de pequenas pontes onde o toiro esfrega os cornos para agrado da multidão, incluindo muitos emigrantes que lá continuam a ir matar saudades. Cá, sentado ao meu computador, também tento matar as minhas. “Ó José, se não te importas, quero que me botes em cantiga aquela questão geográfica da Arrochela que te faz homem de duas freguesias e a mim faz-me confusão.” Prestável como sempre, ele não se faz rogado em corresponder logo ao meu pedido: Quem conta aument’um ponto/Mas isso é natural/Vou assim contar o conto/Com a tradição oral. S’a memória não m’escapa/Quem dividiu a zona/Viu Ribeira da Lapa/Onde é a Pampalona. Duas freguesias ter/Qual a confusão que dá?/É c’ma d’América ser/Com papeis do Canadá. Assim, com uma leve pincelada do seu humor repentista, o meu amigo José d’Árrochela concluiu em beleza esta crónica por mim.
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