MILAGREZINHO
Estava-se na pacatez dos anos sessenta lá nas nossas atlânticas Ilhas de Bruma onde o arrastado ritmo de vida então, sobretudo para a irriquieta malta estudantil, tornava-se algo aborrecido naquela rotineira monotonia rural a pedir para ser quebrada fosse lá como fosse. Ir ao banho, aos toiros, à missa ou aos ensaios do grupo coral (onde a música era a mesma) eram, por assim dizer, as chances que não enjeitávamos de fazermos olhinhos bonitos às mesmas meninas lá do sítio. A não ser que chegassem de fora emigrantes com suas filhas já mais ou menos americanizadas. Aí, apraz-me admitir que a música já era outra.
Setembro tinha chegado naquele ano com bom tempo, melhor colheita e mais saúde em casa do Ti Jaquim Caganita ainda a recuperar-se de operação melindrosa à tripa grossa que o levara à cama tempo demais no ano anterior quando consta que estivera mesmo às portas da morte. Debaixo de tamanha agonia, e antes do marido ter subido à mesa das operações, prometera a Tia Chica Caganita a Nossa Senhora dos Milagres ir a pé à Serreta com o filho se o seu benquisto Jaquim escapasse àquela desfortuna respirando melhor saúde.
Talvez devido a ser mulher de muita fé, a Tia Chica lá conseguiu que a sua prece fosse ouvida. Faltava agora a promessa ser cumprida. Nunca era fácil agarrar tempo livre nos setembros dos Biscoitos de outrora com as vindimas em cima das festas a atarefarem o pessoal da freguesia dia e noite. Aquela noite do sábado para o domingo da festa da Serreta, no entanto, uma semana antes, era quase sagrada ao redor da Ilha devota da sua típica religiosidade popular. Rumar à Serreta em romaria, sobrepunha-se às demais manifestações de ardente fé ilhoa. Dar à perna naquelas singulares circunstâncias não era bem um passeio mas acabava por juntar o útil ao agradável que uma salutar caminhada oferece a qualquer jovem ilhéu sonhador.
Amigo chegado do Juventinho Caganita, filho único do casal, fui logo convidado para acompanhá-los na ida a pé à Serreta a fim de pagarem solenemente aquela sua promessa. Connosco iria também uma rapariga vizinha, por quem o Caganitinha nutria um fraquinho romântico, fazendo-se acompanhar duma amiguinha emigrante lá de passagem e por quem eu alimentava igualmente uma platónica paixoneta.
Dois meninos e duas meninas da escola secundária com a mãe do Juventinho e as mãezinhas das donzelas fizeram-se à estrada naquela linda noite de Lua Cheia a iluminar-lhes os passos pausados desde o centro dos seus pitorescos Biscoitos ao altar da igreja da Serreta onde, segundo a Tia Caganita, nos esperava a Senhora do bendito milagre da boa saúde que o seu querido Jaquim gozava de novo.
Para as simpáticas senhoras, de certeza que aquela devia ser uma experiência marcante na sua reconhecida devoção à prodigiosa Mãe de Deus. Prestar contas de reconhecimento para com os grandes ou pequenos Milagres da Senhora, sobretudo no pagamento de promessas feitas em momentos mais aflitivos, no pensar do povo, fora sempre condição indispensável a ganhar-se um lugarinho no céu. Para nós, jovenzinhos a caminho da puberdade e a vivermos num lugar e tempo onde ainda não era costume verem-se raparigas e rapazes juntos, aquela era certamente uma excelente oportunidade de fintar a tola teima de ter de se ver sempre o sexo oposto do outro lado da escola, da igreja ou do caminho.
No passo lento de quem dispensa a pressa e detesta o cansaço, vimos logo que não chegaríamos à igreja da Serreta senão lá para as tantas da manhã. Devido à idade a pesar-lhe nas pernas e no fôlego, as mãezinhas iam ficando para trás de conversa pegada a belprazer. “Valha-me Nossa Senhora Dos Milagres que eu podia bem ter pago esta promessa lá na América, em Gustine, mas não queria que o meu Joe desconfiasse do prometido.” Connie Souza desabafou assim como quem não queria que se soubesse. “Não querias que ele desconfiasse o quê, mulher?” O espanto da Tia Chica fez a sua luso-americana comadre ter de explicar-se um pouco melhor. “Olha que isto não se diz a ninguém. Eu tinha prometido à Senhora Dos Milagres, se o meu Joe deixasse de beber e de fumar, quando viéssemos à Terceira ia a pé à Serreta.” A Caganita desconcertou-se de curiosa. “E ele nunca mais tocou num copo nem num cigarro?” Mrs. Souza benzeu-se antes de levar a mão ao peito. “Nunca mais fumou nem bebeu coisa para lhe fazer mal.” Depois, hesitou… franzindo a testa. “O mal é que agora não pára de comer. O cinto já não tem mais furos. Tou a ficar agoniada, não lhe vá dar alguma coisa de repente. Nossa Senhora permita que não.” Desabafo sentido no reparo a respingar de imediato. “Nossa Senhora pode tirar a pinga ou fumo mas… a fome?…Essa é que não a tira a ninguém. Era só o que faltava.” E não faltou a risota descontraindo as três a tagarelarem quase esquecidas das suas meninas e meninos namoriscando lá mais adiante.
De pé ligeiro e ideias frescas, de facto, tínhamo-nos já adiantado numa curva fora do olhar censurador das mãezinhas vagarosas. Nem a Lua nos conseguia topar. Aconchegados sob a sombra noturna do denso arvorendo a beirar aquela oculta faixa da estrada, mãos dadas com os olhos nos olhos, sentimos o nosso diálogo perder as palavras. A língua e os lábios haviam-se momentaneamente colado ao céu da boca presa em gesto tão sublime que, naquele momento e com aquela idade, julguei tratar-se mesmo de um milagrezinho. Tal nunca me havera acontecido antes. Tremia de alegria. Fora o meu primeiro contato direto com a doce macieza duma moça. Tão fofa era a tal menina emigrante que nunca mais vi mas colei para sempre às lindas memórias juvenis que hoje me apraz rever.
Só eu sei como me vi radiante, naquela remota madrugada, ao entrar na igreja da Serreta para agradecer comovidamente à Virgem o milagrezinho concedido em inolvidável noite de Lua a encher-me a alma de magia. A deliciosa magia do meu primeiro beijinho… de amor, julgava eu ainda na minha tenra ingenuidade de puto adolescente.

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