Associação dos Ex-Combatentes da Ilha do Faial Que seria de nós se não tivéssemos memória?
Com texto e organização de Jorge Vieira, arquivo e organização de Raul Dutra, colaboração de José Alemão e Hélio Pombo, Que seria de nós se não tivéssemos memória? (Dezem-bro, 2018) dá conta de todo o historial da Associação dos Ex-Combatentes da Ilha do Faial, fundada no dia 10 de maio de 2004. São-nos dadas, nesta publicação, minuciosas informações sobre a sede da Associação, seus estatutos e associados, suas direcções e comissões, seus órgãos sociais, delegados das freguesias, directores responsáveis por freguesias, sócios no ativo, sócios inactivos e sócios honorários.
Ilustrado com uma série de fotos que dão contexto, forma e verdade, o livro, que abre com uma “Mensagem”, de José Leonardo Goulart da Silva, Presidente da Câmara Municipal da Horta, inclui ainda depoimentos do general Silva Cardoso, do coronel Carlos Matos Gomes e do jornalista-escritor João Paulo Guerra, bem como a letra e a partitura do “Hino da Associação dos Ex-Combatentes da Ilha do Faial”, com música de Amorim de Carvalho e letra de Victor Rui Dores.
Houve uma guerra em África. E os ex-combatentes do Faial estiveram lá. No fio da navalha. Na linha de tiro. Caminhando sobre o abismo. Mas também, e indirectamente, lá estiveram as suas mães e pais, as suas noivas, esposas e madrinhas de guerra que, por via dos aerogramas e da saudade, sofreram, à distância, este conflito armado.
Mas de que falamos nós quando falamos em Guerra Colonial ou Guerra do Ultramar?
Falamos de um conflito armado que durou de 1961 a 1974 e que constituiu uma das mais trágicas encruzilhadas da História portuguesa. Falamos de uma ferida que, meio século depois, ainda não cicatrizou na memória dos que a viveram. Não foi só o caudal de mortos, feridos, estropiados e desaparecidos que essa guerra provocou em Angola, Guiné e Moçambique. Foi também a memória de um tempo em que o medo, a crueldade e a intolerância foram postos ao serviço dos mecanismos repressivos do Estado Novo, numa altura em que Portugal, “país uno e indivisível”, vivia, entre parêntesis e a preto e branco, no seu ruralismo agrário, no seu conservadorismo bacoco e no seu analfabetismo envergonhado.
Não é possível esquecer os dias incertos da guerra: os ataques, as flagelações, as emboscadas e contra-emboscadas, o sopro dos rebentamentos, o disparo dos morteiros, as rajadas de G-3, o perigo das minas anti-pessoal, os roncos de “unimogs” e “berliets”, a marcha lenta, a farda ensopada, as ordens insensatas, as missões absurdas, as picadas da incerteza, a solidão do capim, a angústia do cacimbo, o medo, o isolamento, o pânico, a distância, a ausência dos familiares e amigos, as noites de insónia, os temores, as alucinações, a memória de ver matar e morrer… Lutaram pela sua sobrevivência, tal como os guerrilheiros inimigos combateram pela sua liberdade. Servindo de “carne para canhão”, todos aprenderam, na guerra, a amar melhor a paz e a celebrar a amizade fraternal. Vendo a morte a rondar por perto, souberam do valor excepcional de viver.
A denominada “Síndrome do Stress Pós-Traumático da Guerra” não é uma figura de retórica – é uma enfermidade que ainda hoje atinge milhares de ex-combatentes (há estudos que apontam para cerca de 140.000), com reflexos diretos nas suas famílias, e, na óptica de alguns psiquiatras, trata-se mesmo de um problema de saúde pública.
Os que ontem eram jovens na flor da idade (entre os 20 e 24 anos) vivem hoje (com mais de 70 anos) o trauma e o recalcamento dessa guerra escusada, estúpida e inglória, como são, de resto, todas as guerras.
A memória é um músculo e ninguém vive sem memória. Os ex-Combatentes da Ilha do Faial não têm, felizmente, falta de memória e, por isso mesmo, não esquecem os 12 camaradas faialenses que, “em defesa da pátria”, tombaram para sempre em terras africanas, conforme podemos hoje ver no memorial sito à Avenida 25 de Abril, na Horta. Isto significa que eles já não combatem, mas ainda lutam. Lutam contra o esquecimento. Lutam contra a incompreensão dos sucessivos governos deste país que tão mal têm tratados quem esteve, à contre coeur, nos palcos de guerra. Hoje, mais vividos e menos jovens, eles teimam em preservar a memória, através de artigos de imprensa, publicações, e encontros anuais.
Há que preservar a memória do vivido e do sentido.
A propósito, e no âmbito da produção literária há autores incontornáveis que, através da escrita, fizeram (e continuam a fazer) catarse e exorcismo da memória relativamente à Guerra Colonial: Álamo Oliveira, António Lobo Antunes, Álvaro Guerra, Cristóvão de Aguiar, Fernando Dacosta, Fernando Assis Pacheco, João de Melo, José Martins Garcia, Manuel Alegre, Mário de Carvalho, Santos Barros, Urbano Bettencourt, entre outros.
Por outro lado, o cinema português tem vindo também a dar importantes contributos na revisitação do referido conflito armado, havendo a destacar filmes como O mal amado (1974), de Fernando Matos Silva; Um Adeus Português (1985), de João Botelho; Non, ou a Vã Glória de Mandar (1990), de Manoel de Oliveira; Inferno (1999), de Joaquim Leitão; Preto e Branco (2002), de José Carlos de Oliveira; Os Imortais (2003), de António Pedro de Vasconcelos; A Costa dos Murmúrios (2009), de Margarida Cardoso, a partir do romance homónimo de Lídia Jorge, entre outros.
Posteriormente, duas séries televisivas (da RTP) vieram avivar a memória da Guerra Colonial e lançar novas formas de compreensão da mesma: As duas faces da Guerra (2003), de Diana Adringa; e Guerra (2008), concebida e realizada por Joaquim Furtado. Duas excelentes séries documentais, que recuperam imagens de arquivo, algumas inéditas, e exibem depoimentos de militares portugueses, colonos e combatentes dos movimentos de libertação das ex-colónias portuguesas.
Que seria de nós se não tivéssemos memória? – eis a pergunta que fica no ar. O livrinho em apreço vem precisamente lembrar-nos aquilo que não podemos esquecer.

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