O “SACA DAS BOLAS”, A VIOLETA
E A MÁ MEMÓRIA...
Já não me recordo se ele era o único a praticar aquele género de negócio mas, pelo menos, foi o que me ficou na memória.
Chamava-se Artur e era micaelense de nascimento. Não sei por que cargas de água veio parar à Terceira, o que sei é que era muito famoso entre a rapaziada. Possivelmente tinha outra ocupação, outro emprego. Eu só me lembro de o ver nos arraiais das touradas ou durante as iluminações das Festas do Espírito Santo. Fazia uma zaragata medonha, conseguia reunir à sua volta uma quantidade de seguidores, na sua maioria adolescentes ou uma catrefa de soldados do Castelo. E tudo por causa da sua famosa saca vermelha!
Foi aquela saca que lhe trouxe o nome que o acompanhou até ao fim dos seus dias. Não foi há muito tempo que vi a notícia do falecimento dele, ali para os lados da “América de Cima” (ou aquela é que é a “de Baixo”?) Lá estava, na página do Facebook do Grupo Amigos da Terceira, de Pawtucket, R.I.: faleceu o “Saca das Bolas”. Curiosamente, foi naquele clube que o encontrei, em setembro de 2016, quando ali fui fazer uma apresentação do livro “A Loja do Ti Bailhão”. Estava velho, o Artur, e adoentado. Mas não se queixou, confessou-me que estava muito preocupado era com a esposa. Perguntei-lhe que era feito da famosa saca, se ainda a tinha. Que sim, tinha-a guardada, para se recordar dos seus tempos de vendilhão.
Era fácil, o jogo do Artur. Chamava a atenção do pessoal com os seus gritos de “Olha a Saca das Bolas e a Violeta!”, ao mesmo tempo que batia, umas nas outras, uma série de tiras de madeira, gravadas com números de 1 a 100, se não estou em erro, 10 por cada ripa. Vendia uma tira a cada cliente e, depois de todas vendidas, era altura para empunhar a saca e chocalha-la com violência, de modo a misturar as bolinhas de madeira, também elas marcadas com números. O feliz contemplado ganhava uma dúzia de chocolates Regina e ficava todo contente com o prémio, podia agora tentar ir no engate daquela pequena que estava teimosa em não querer namorar com ele. E o Artur recolhia as tirinhas de madeira e preparava nova jogatina.
Aos anos que isto já foi! Há mais de 50 ou 55, de certeza. Como disse acima, a minha memória já não me permite recordar todos os pormenores do jogo do Artur, é possível que eu esteja a misturar alhos com bugalhos. Deveria ter pedido ao Artur, quando o encontrei, que me tivesse avivado as ideias e, acima de tudo, eu deveria ter-lhe pedido que me explicasse melhor a lengalenga do pregão dele, afinal para que é que uma “Violeta” era para ali chamada? Ou, se calhar, a saca das bolas era de cor violeta e não vermelha, como eu sempre a imaginei.
Ora bem... de repente fiquei a bater pano. É que, sem mais nem menos, veio-me à ideia que não seria o bom do Artur que misturava a saca das bolas com violetas. Parece-me que (talvez!) era obra de algum ilusionista ou mágico que fazia parte do Circo Maravilhas ou do Circo Royal, um desses que aparecia uma vez por ano na nossa santa cidadezinha. Ajudem-me lá vocês, não era um desses artistas que fazia uma ajudante, mal equilibrada nuns sapatos muito altos, desaparecer por detrás de umas cortinas, ao mesmo tempo que o homem da bateria se escangalhava todo num estridente bater de pratos e tambores, enquanto o artista gritava com toda a força dos seus pulmões: “É a Flor Humana, a Violeta! Aparece e Desaparece!” E eu para aqui a meter expressões na boca do Artur e o desgraçado (talvez!) sem culpa nenhuma.
Não gosto nada quando me acontece misturar assim as recordações dos dizeres e dos fazeres dos meus heróis de criança. Fico triste porque perco as imagens, deixo de ouvir os sons das vozes deles, misturo mágicos com palhaços, diluem-se as gargalhadas dos engraxadores com os ditos dos vendedores de favas torradas, caldeio as piadas mordazes dos taxistas com as cantilenas engraçadas dos nabiças. Os barulhos, os cheiros, os gostos e os rostos de antigamente esfumam-se em enroladas memórias, tingem-se de tons diferentes, vestem roupagens esquisitas. Fico com a ideia que me apetece mudar o passado, moldar os enevoados factos e ajeitá-los melhor às minhas lembranças para que assim, sem grande esforço, eu possa reviver o que já me ilude e me escapa por entre as gretas da saudade.
Difícil será manter este jogo ativo, sacudir as sacas cheias de memórias, bater estas ripas numeradas, gritar um “Vai mais um joguinho, freguês!” e esconder detrás de uma cortina colorida a atriz dos nossos sonhos. Daqui para a frente serão cada vez mais ténues as imagens no fundo do meu cérebro e passarão a ter cada vez menos relação com os nacos de vida que as criaram. Os meus olhos, esses faróis que tudo bisbilhotaram, nem privados de luz pelo encerro das pálpebras me permitem um momento de paz e calma reconciliadora capaz de rejuvenescer os catálogos e os tesouros dos meus ficheiros privados. Dentro em breve tudo estará perdido, esquecido.
Como seria diferente o nosso viver se soubéssemos que não nos esqueceríamos de nada! Se houvesse a possibilidade de, com um mero estalar dos dedos ou um simples piscar dos olhos nós revermos o passado ao nosso belo prazer, talvez a nossa vida não fosse tão confusa, digamos assim. Ou, quem sabe, seria ainda pior, não nos saiam da frente dos olhos as más lembranças... Se eu fosse cientista, tentaria implantar no cérebro de um recém-nascido, um sistema cibernético que fosse crescendo com o indivíduo, gravasse tudo o que lhe acontecesse durante a vida e que fosse de fácil acesso para “visualização” imediata em qualquer ecrã de computador. Seria o fim dos mentirosos ou dos esquecidos, nunca mais ninguém poderia usar o argumento do “já não me lembro” ou do “não foi isso que eu disse”.
Melhor ainda, antes de me dedicar a esse utópico projeto científico, vou mas é imaginar-me a comer um chocolate Regina, daqueles que o Artur “Saca das Bolas” arrematava.
Pelo menos serão lembranças doces e saborosas!
Lincoln, Ca. Março 6, 2019
João Bendito

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