SABEDORIA POPULAR
Estávamos no princípio do ano de 2010, mais ou menos na altura certa para serem podadas as árvores de fruto, de modo que elas se preparassem para fazer desabrochar as flores, as folhas e depois os gostosos frutos que haveríamos de saborear no verão, se é que até lá os mosquitos e os melros não dessem cabo deles.
O quintal da casa onde eu vivia na altura, na cidade de Hayward, Califórnia, estava enfeitado com algumas árvores, não tantas como eu gostaria mas as suficientes para poder colher damascos, ameixas e até uvas que nos regalavam o paladar e ainda sobravam para oferecer a vizinhos e amigos.
Claro que eu não tinha experiência nem conhecimentos para cuidar da poda, não saí nada parecido com o meu avô graciosense Guilherme «Rato», esse sim um grande vinhateiro e cuidador de pomares. Quem me ajudava nesse trabalho era o meu amigo Senhor Luís Avelar e fazia-o com tanto cuidado e jeito que as árvores parecia que não queriam que mais ninguém lhes tocasse.
Conheci o Ti Luís, como eu respeitosamente o trato, já lá vão mais de trinta anos, quando ele fazia trabalhos para um empreiteiro e amigo, para quem eu também trabalhava em biscates de fim-de-semana. Já nessa altura eu via a sua veia de inimigo do descanso. É fisicamente um homem pequeno mas muito rijo, apanágio das gentes da Ilha das Flores, terra que ele saudosamente deixou décadas atrás. Foi companheiro de muitos portugueses nas linhas de montagem de uma fábrica de camiões pesados, de onde acabou por se reformar.
Nessa altura, já com mais de 75 anos de idade e atormentado por problemas de saúde -- “O raio da diabetes, que não há maneira de baixar”, lamentava-se -- o Ti Luís ainda se mantinha muito ativo e mexilhão, cuidava com esmero do seu quintal e do jardim, sempre acompanhado por um grande cão branco. Dizia-me que no ano anterior tinha colhido tanta batata que lhe sobrou para meio ano e então fruta nem se fala, embora comesse pouca por causa do açúcar. Não gastava muito dinheiro na água para o regadio, tinha as calhas de recolha da água da chuva ligadas a grandes barris de plástico, onde a armazenava e usava conforme era preciso. Adubos também usava quase nada, era um agricultor ecologicamente exemplar.
Sempre preocupado com a sua saúde, o Ti Luís fazia, todos os dias, acompanhado por Inês, a senhora sua esposa, umas grandes caminhadas pelas ruas e parques da sua vizinhança. Ela, senhora de uma educação e simpatia genuinamente florentinas, inquietava-se para o acompanhar porque ele levava aquilo muito a sério. Não corria mas também não andava, era assim um movimento parecido com os andarilhos olímpicos, quase que aos saltinhos. Tomara eu ter a força de vontade e perseverança que ele tinha!
Mas, acima de tudo, do que eu gostava mais era de o ouvir falar, não só para apreciar o melodioso sotaque característico das Flores mas porque me deliciava com as histórias que ele tão bem sabia contar. Já mostrava certo desespero quando tinha dificuldade em recordar algum pormenor mas mantinha ainda bem vivas muitas das imagens da sua difícil juventude, das necessidades passadas quando a família perdeu o seu chefe e deixou a mãe sozinha a cuidar de três crianças de tenra idade. O pai, marítimo e baleeiro de profissão, morreu num acidente no mar e nunca o seu corpo foi resgatado. “Nem tinha completado quarenta anos!”, disse-me, com tristeza. Ainda assim, talvez com a ajuda de familiares, o jovem Luís conseguiu ir à escola e fazer o exame da quarta classe com distinção. Tem um gosto especial pela História de Portugal e pela geografia universal. Com orgulho, diz que é capaz de encontrar num mapa qualquer país do Mundo e sabe nomear a capital de quase todos. Consola-se a ver na televisão os documentários do «National Geographic» e os programas informativos e culturais. Foi, na sua mocidade, um bom tocador de violino mas, infelizmente, já não toca, a rudeza de ouvido não ajuda.
As saudades da sua Ilha das Flores são mais que presentes em todas as suas conversas, não perde uma oportunidade para falar nas belas paisagens, nas lindas lagoas, nas hortências... também nos familiares e amigos que deixou atrás e já não vê desde a última vez que desembarcou no porto das Lages, já há mais de trinta anos. “Aquilo agora está tudo mudado, no meu tempo é que era um penar! A minha filha diz que ainda um dia me vai levar outra vez às Flores mas eu não sei...”, dizia assim com uma mistura de esperança e de medo, como que a duvidar que tal fosse possível.
Na manhã seguinte ao dia da poda e aproveitando uma esteada da chuva que nos tinha apoquentado nessa altura, eu meti-me, no quintal, a recolher os ramos que resultaram do trabalho do Ti Luís. Cada um deles me fez recordar muitas das palavras do meu velho amigo. “Eu comecei a dar dias para fora muito novinho, estou habituado à chuva e ao vento. Muita alagação apanhei nestes ossos”. Com um raio de filosofia popular, avisou-me: “Sabes, João, os homens não são fortes como as árvores. Se te cortassem os dedos ou os pés tu já cá não estavas”. É verdade, pensei eu, as árvores resistem ao corte anual dos apêndices e crescem cada vez com mais força, ao contrário dos humanos que, ao longo da vida, vão perdendo qualidades. Não há laranjeira ou pereira que seja eterna mas os homens muito menos o são. A única maneira de podermos resistir melhor ao desgaste dos anos é tentarmos manter uma vida saudável e ativa, tanto física como intelectualmente. Foi isso mesmo que o Ti Luís me fez alertar nesse janeiro, com as suas conversas simples e repletas de sabedoria popular.
“E olha que eu não duro para sempre, João. Vai aprendendo como se faz”. Só que este conselho do Ti Luís não surtiu efeito, no ano seguinte eu vendi a casa, mudei-me para outra cidade e aqui onde vivo agora não tenho nem uma árvore de fruto que seja. Perdi o ensejo de pôr em prática os ensinamentos do velho florentino.
Ontem, em conversa telefónica com uma amiga que vive perto do Ti Luís, perguntei-lhe por ele. “Parece que está bem, vejo-o ai pelas ruas, nas suas rápidas caminhadas”, respondeu-me. Fiquei contente.
Agora, o que eu gostaria mais era que os diabetes o deixassem em paz e que ele voltasse a ter vontade de tocar o seu violino.
Lincoln, Califórnia, 1º Dia de Primavera, 2019
João Bendito

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