Foi por causa do diabo da "gaita"!
Vou falar de histórias
reais passadas na minha freguesia. Confesso que não assisti, mas foram contadas
por uma prima da minha avó paterna, a tia Etelvina, que tinha imenso jeito para
o fazer, não fosse ela uma grande imitadora.
Como é sabido, na freguesia das Doze Ribeiras, sempre houve muitas coroações do
Espírito Santo, normalmente com as chamadas funções, que era nada mais nada
menos, do que as abençoadas sopas do Espírito Santo, confeccionadas com pão de
água, cozido em fornos de lenha, regadas com bom vinho, cozido, alcatra e arroz
doce. Não faltando os restantes pães, além da massa sovada, que fazia a delícia
de todos os convidados, sobretudo quando eram bem confeccionados por pessoas
que percebiam do assunto.
Então, contava a tia Etelvina, que terão venerado o Espírito Santo na casa de
uma família lá das Doze, durante quinze dias, como era hábito, onde se juntavam
pessoas diariamente para a recitação do terço. A tia Etelvina, como era
solteira, tinha alguma disponibilidade para o fazer e quase todos os dias, lá
ia rezar o terço, acompanhada da minha tia Maria.
Num desses terços, andava a minha tia Maria a brincar com outra menina do seu
tempo e lá faziam um jogo que não sei precisar o nome, sei que se aproximavam e
afastavam. E uma das filhas do dono da casa, a tia Rosa Júlia, que se tinha por
ser uma mulher de muito respeito, disse-lhes - Eu não quero aqui bailaricos! A
tia Etelvina respondeu que as pequenas apenas estavam a brincar, ao que ela
terá ripostado - Eu não sei, sempre é andar com o "cu" para traz e
para a frente!!!
Na supramencionada família havia um pai viúvo, com três filhos, a já citada
Rosa Júlia, a Maria do Carmo e o José. Segundo dizia a tia Etelvina, as
raparigas não eram muito dadas a coisas de feminilidade, eram mais do tipo
arrapazado, embora usassem saias, que era o costume da época. No entanto, a tia
Rosa Júlia, era mais masculinizada do que a irmã, Maria do Carmo. Dizia-se que
a tia Rosa fumava o seu cigarro às escondidas, embora não o admitisse.
O que é certo, é que um dia, encontrava-se a tia Rosa Júlia na mercearia do meu
avô António, e foi lá um rapaz, bastante jovem, comprar cigarros. Naquele
tempo, ainda se vendia em pacotinhos avulso. Quando o meu avô lhe perguntou
quais eram os cigarros, ele terá respondido, com alguma ironia, que podia ser
daqueles que a tia Rosa fumava. Ela, imediatamente foi à tranca da porta para
lhe bater. E dizia ela - Ó diabo, é porque eu sequer fumo?!!
Lá chegou o dia da coroação. Foram com o cortejo para a Igreja, na altura sem
acompanhamento da Filarmónica, pois não havia, mas com o terço cantado durante
o percurso efectuado até à Igreja. E no cortejo, lá ia o tio José da Costa com
os seus filhos, de mãos atrás das costas, observando o meio que o rodeava.
Já na Igreja, procedeu-se à coroação das pessoas que estavam destinadas para
esse fim, o Sr. Padre deu a benção e lá regressaram a casa para a dita função
das sopas.
Tudo decorria dentro da normalidade, num espaço amplo, onde havia uma eira e
uma atafona. O sol era abrasador e o tio José da Costa, já em avançada idade,
para se proteger, sentou-se na soleira da porta da atafona que ficava ao fim
dos degraus.
A tia Rosa Júlia, uma mulher destemida e cautelosa, a primeira coisa que fez,
foi ir à mesa onde se encontravam os jovens a avisá-los de que os pais lhe
tinham dito para ela não lhes dar vinho. Era mais que sabido que o objectivo
era que sobrasse para os adultos, já que o vinho não era em abundância.
Apesar da distracção, havia quem estivesse atento, o caso da tia Etelvina. E
como alguém tocava acordeão, enquanto se esperava que fosse servido as iguarias
da função, as pessoas estavam mais descontraídas e nem se apercebiam do que se
estaria a passar. Foi então que a tia Etelvina notou que o tio José da Costa
fazia caretas intermitentes e esticava as pernas. Ora uma, ora outra. Neste
esticar de pernas, lá desmaiou e caiu para o lado.
Logo surgiu a tia Rosa Júlia com o seu ar altaneiro e decisivo - Olha o ataque
que deu em meu pai! causa do diabo da "gaita"! Interveio a tia Maria
do Carmo - Foi cá por causa de "gaita" nenhuma! Foi por causa dos
sapatos apertados.
A tia Maria do Carmo é que sabia o que tivera acontecido, visto que o pai tinha
usado os seus sapatos para ir na coroação.
Era a miséria do tempo, em que tudo era aproveitado e não se olhava se era de
homem ou de mulher. A necessidade assim o exigia. Embora, os sapatos de senhora
daquela altura, passassem bem despercebidos, pois eram de salto baixo e com
formas de sapato de homem.
E assim, desmaiou o tio José da Costa, que ao invés de tirar os sapatos porque
lhe apertavam, deixou-se ficar até ao fim, à laia de promessa, pois era pior
ficar descalço do que aguentar as dores que suportara com o aperto dos
sapatos.
Convém dizer que foi reanimado, a filha descalçou os sapatos e lá continuou a
festa, mas sem acordeão.
28-03-2019
Graziela Veiga
Sem comentários:
Enviar um comentário