JORNALISMO EM DESTAQUE

485º Aniversário da Cidade de Angra do Heroísmo

sábado, 30 de março de 2019

Da escritora Graziela Veiga

                                                                         

Foi por causa do diabo da "gaita"! 

Vou falar de histórias reais passadas na minha freguesia. Confesso que não assisti, mas foram contadas por uma prima da minha avó paterna, a tia Etelvina, que tinha imenso jeito para o fazer, não fosse ela uma grande imitadora. 



Como é sabido, na freguesia das Doze Ribeiras, sempre houve muitas coroações do Espírito Santo, normalmente com as chamadas funções, que era nada mais nada menos, do que as abençoadas sopas do Espírito Santo, confeccionadas com pão de água, cozido em fornos de lenha, regadas com bom vinho, cozido, alcatra e arroz doce. Não faltando os restantes pães, além da massa sovada, que fazia a delícia de todos os convidados, sobretudo quando eram bem confeccionados por pessoas que percebiam do assunto. 



Então, contava a tia Etelvina, que terão venerado o Espírito Santo na casa de uma família lá das Doze, durante quinze dias, como era hábito, onde se juntavam pessoas diariamente para a recitação do terço. A tia Etelvina, como era solteira, tinha alguma disponibilidade para o fazer e quase todos os dias, lá ia rezar o terço, acompanhada da minha tia Maria. 

Num desses terços, andava a minha tia Maria a brincar com outra menina do seu tempo e lá faziam um jogo que não sei precisar o nome, sei que se aproximavam e afastavam. E uma das filhas do dono da casa, a tia Rosa Júlia, que se tinha por ser uma mulher de muito respeito, disse-lhes - Eu não quero aqui bailaricos! A tia Etelvina respondeu que as pequenas apenas estavam a brincar, ao que ela terá ripostado - Eu não sei, sempre é andar com o "cu" para traz e para a frente!!! 

Na supramencionada família havia um pai viúvo, com três filhos, a já citada Rosa Júlia, a Maria do Carmo e o José. Segundo dizia a tia Etelvina, as raparigas não eram muito dadas a coisas de feminilidade, eram mais do tipo arrapazado, embora usassem saias, que era o costume da época. No entanto, a tia Rosa Júlia, era mais masculinizada do que a irmã, Maria do Carmo. Dizia-se que a tia Rosa fumava o seu cigarro às escondidas, embora não o admitisse. 

O que é certo, é que um dia, encontrava-se a tia Rosa Júlia na mercearia do meu avô António, e foi lá um rapaz, bastante jovem, comprar cigarros. Naquele tempo, ainda se vendia em pacotinhos avulso. Quando o meu avô lhe perguntou quais eram os cigarros, ele terá respondido, com alguma ironia, que podia ser daqueles que a tia Rosa fumava. Ela, imediatamente foi à tranca da porta para lhe bater. E dizia ela - Ó diabo, é porque eu sequer fumo?!!

Lá chegou o dia da coroação. Foram com o cortejo para a Igreja, na altura sem acompanhamento da Filarmónica, pois não havia, mas com o terço cantado durante o percurso efectuado até à Igreja. E no cortejo, lá ia o tio José da Costa com os seus filhos, de mãos atrás das costas, observando o meio que o rodeava. 

Já na Igreja, procedeu-se à coroação das pessoas que estavam destinadas para esse fim, o Sr. Padre deu a benção e lá regressaram a casa para a dita função das sopas. 

Tudo decorria dentro da normalidade, num espaço amplo, onde havia uma eira e uma atafona. O sol era abrasador e o tio José da Costa, já em avançada idade, para se proteger, sentou-se na soleira da porta da atafona que ficava ao fim dos degraus. 

A tia Rosa Júlia, uma mulher destemida e cautelosa, a primeira coisa que fez, foi ir à mesa onde se encontravam os jovens a avisá-los de que os pais lhe tinham dito para ela não lhes dar vinho. Era mais que sabido que o objectivo era que sobrasse para os adultos, já que o vinho não era em abundância. 

Apesar da distracção, havia quem estivesse atento, o caso da tia Etelvina. E como alguém tocava acordeão, enquanto se esperava que fosse servido as iguarias da função, as pessoas estavam mais descontraídas e nem se apercebiam do que se estaria a passar. Foi então que a tia Etelvina notou que o tio José da Costa fazia caretas intermitentes e esticava as pernas. Ora uma, ora outra. Neste esticar de pernas, lá desmaiou e caiu para o lado. 

Logo surgiu a tia Rosa Júlia com o seu ar altaneiro e decisivo - Olha o ataque que deu em meu pai! causa do diabo da "gaita"! Interveio a tia Maria do Carmo - Foi cá por causa de "gaita" nenhuma! Foi por causa dos sapatos apertados. 
A tia Maria do Carmo é que sabia o que tivera acontecido, visto que o pai tinha usado os seus sapatos para ir na coroação. 

Era a miséria do tempo, em que tudo era aproveitado e não se olhava se era de homem ou de mulher. A necessidade assim o exigia. Embora, os sapatos de senhora daquela altura, passassem bem despercebidos, pois eram de salto baixo e com formas de sapato de homem. 

E assim, desmaiou o tio José da Costa, que ao invés de tirar os sapatos porque lhe apertavam, deixou-se ficar até ao fim, à laia de promessa, pois era pior ficar descalço do que aguentar as dores que suportara com o aperto dos sapatos. 

Convém dizer que foi reanimado, a filha descalçou os sapatos e lá continuou a festa, mas sem acordeão. 


28-03-2019

Graziela Veiga


Carlos Alberto Alves

Sobre o autor

Carlos Alberto Alves - Jornalista há mais de 50 anos com crónicas e reportagens na comunicação social desportiva e generalista. Redator do Portal Splish Splash e do site oficial da Confraria Cultural Brasil-Portugal. Colabora semanalmente no programa Rádio Face, da Rádio Ratel, dos Açores. Leia Mais sobre o autor...

Sem comentários:

Enviar um comentário