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485º Aniversário da Cidade de Angra do Heroísmo

sábado, 2 de março de 2019

Da poetisa-escritora Maria Azevedo


Do livro Arquipélago do Sentir


CONTINUAÇÃO

A ilha estava aqui e ali, vestiram-se as terras de hortênsias no instante de acordar acenando.  Caminhava por esta altura a passos largos para a aprendizagem do seu mistério e a razão daquele amor.  Afinal não era assim tão frágil a sua Terra dos Bravos.
Terra dos Bravos, era ainda e sempre terra por descobrir.
Quantas horas dos seus dias escrevendo palavras sem destino, só na descoberta do que por dentro de um ilhéu era... ou do que estaria para além de todas as palavras... talvez ainda do que todos os sentidos tornados palavras, tornavam tão aquém o furor ou a calma dor, dorida, que se germina, no peito, no coração?
Não importava aonde, desde que tudo fosse o sentir.
Sentir era a sua perfeita combinação, entre o ser, o ser de dentro, sem pontos, nem vírgulas ou outros artefactos, era o acto de respirar, libertando por todos os poros, o saber da existência da palavra ilha, da palavra mar, ainda e sempre das mais bonitas palavras.
A questão estava em pegar nisto tudo e usá-las com naturalidade, puros e intactos, muito embora magoasse.
Coisas estranhas boiavam no lugar aberto das pausas, confraternizando com sua força lenta, mas elaborada, do descobrir do seu amor extremo aquela ilha, tarefa que no seu ser se entranhava em cada fibra.  Fibras, foram tempos fora, explicando-se, dando-lhe a segurança dos tempos certos, compartimentando-os, definiu o que de si restara em destilações de partida.
Mudou-se o espaço.  A não sei quantas milhas de ondas e sal, ficam as terras de horizonte montanhoso de urgueiras e giestas, coração da Beira-Alta.
Nascida, Maria, entre brumas e vapores, criada com um tecto da terra caído no mar, vai-se agora habituando a estar, embora, sempre que a vejo, prevaleça em mim a certeza de a ver ficar exactamente, alga, gaivota, como nasceu.  Recebeu-a a Beira com um fado serrano, apertando-lhe na garganta a Charamba.
São dias de Inverno durante nove meses, gela o “codo” nos caminhos e quando o ar está da cor da abelha, vêm os nevões, cobrem-se as capuchas e acendem-se fogueiras, logo ali na laje da cozinha, um lume a dar pelas barbas. É tempo de matança.
Na sua ilha tudo crescia entre o chão e terra, aqui a terra é pobre, a carne vai para os salpicões e as castanhas vão para o caniço, comendo-se abaladinhas, depois duma malga de caldo d'unto.
Que sabe já, a minha amiga, do Pão por Deus, das papas grossas, das ameixas vermelhas, perfumando cestos, que vinham canal fora das ilhas de baixo.
Mas sabe, sabe também de Dezembro e dos Natais, com presépios de musgo e lava e tigelinhas de trigo p'ra germinar no dia de Santa Luzia, enfeitando o Menino do Natal até aos Reis.
E sabe dos bodos de leite, dos Impérios enfeitados, cheirando a massa sovada, a alfenim, na procissão das oferendas.
Ai, minha terra presa por um fio, diz, nem teus mistérios de fundo de mar me escapam.
E cada vez mais me convence que ser-se ilhéu é ser-se a mais por dentro outra pessoa.
Que um ilhéu tem olhos de negro-verde, mãos abertas como asas e um coração puro como o das aves, ensaiando um hino de liberdade e vento a tempo inteiro.
São milhas e milhas, mas nos seus olhos continuo a ver o seu doer de renovar, morrendo de vontade de partir, do seu cais sem adeus, do seu naufrágio dormente de fundo de olhos, do seu intextual vazio a preencher, numa gota de água que tomba sempre.
Talharam-lhe mares à volta, o terramoto das correntes e de palavras quietas, marcando compasso, ao som de todas as vozes lentas, que a foram encharcando de solidão.
Esta minha amiga, fez-se. quando as mãos frias do mar lhe selaram este pacto, que se ficou hibernando, na mala que não fez viagem, de folhas que não apanharam navio.
Escondida nos seus sentidos de choro louco, aquela nódoa de alma sedenta, daquele sabor, que não saboreou além do meio.
Ficou então, com este porto-ponte de vagas atadas, florescendo ventos, assobiando nas burras de milho, escorrendo-lhe dos olhos, navegando-lhe viagens, as suas sementes, sedentas de serem árvore - alma - navio, pés de ilha, papejando... papejando ... !
Nos seus olhos continuo a ler a mensagem que me diz:
-”Quero uma casa formando vapor, abrindo portas numa baía, de um lado o céu, do outro o mar...”
Este é o seu lado do avesso.  O que dela se tornou ilha, ou paisagem, irmã do tempo, em que letras de luto, vírgulas de nostalgia, em pontos de cruz.
Continua ainda hoje, a arrastar em quarto minguante o seu destino de ilha ilhéu num continente perdida, repassando os dias, digerindo o tempo, fechando portas, conciliando, por dentro e por fora, à espera que naveguem ainda barcos e aviões... (nem que seja só na imaginação).
Em curto-circuito, atravessa-lhe o peito, o espaço pousado, do seu tempo de quase hóspede, na sua terra, falando-lhe de boca pequena, para não acordar a saudade.
Que estranho tempo espalhado sem conserto, em ânsias de asas, abrindo-se no seu caminho como serrados... é este o seu lugar, guardado no fim de todas as fronteiras e tempos... um mar aberto... um grito de gajeiro...
Na atmosfera aberta, eis mar, ventos e ilhas nas suas mãos, quais vidrilhos rolados, licor amargo-doce, destilado em invenções de ser-se e ter-se, o tempo de sentir e saciar-se à dor de dentro do amor machucado.  Gastando o coração em procuras, guarda a poesia no bolso e põe para florir e regar, toda a beleza que lhe deixaram os que em equações de amor se mediram e guardam intacto e puro, o privilégio de nascerem ilhéus.
A ilha, um círculo de peixes... um ruído... um choro dentro de corais.
Uma melodia lenta, com uma alegria morosa, não acordando demasiado cedo... preparada para os que lutam e esperam sempre.  Mudos e excitados.
Assim, foi criando o espaço-ilha, próprio de estar.. um mundo quente, que o mar acende e as tradições mantém.
Uma força fresca num passo de dança, num volteio de capa, num estouro de foguete... numa camisa de linho, vaidosa de um nome a ponto de cruz.
Atou, num adormecer trémulo, aquele lugar-casa de morarem a meias.
Morarem a meias:
Tremem as pálpebras da terra, tecendo abraços sem nome, tocando-a de luz, desenhando-lhe os gestos, prolongando nela os seus sons e seus sustos.
Ilha, dona solitária daquele seu tempo de raízes, amava-a, (ainda hoje), fazendo-lhe poemas, como rendas novas, para a Coroa do Divino...
Enchia-lhe o peito em dias de grito, como o orvalho... o coração nas mãos.
Montes de coisas perdidas, em silêncios de papéis adormecidos.  Terra cheia que a gerara, espalhando com ternura todos os tempos povoados de coragem, cultivando-a com o linhais, tornando maduros os seus pedaços, que o tempo de ilha os fez sedentos.
Estremeceu, a minha amiga, empurrando esta porta da saudade, os braços mal cabiam lembranças dentro, escapando-lhe por entre os dedos, cheiros pintados de lembranças.
Impotência muda, que na ilha dos Bravos nascida, foi aos poucos, direito e avesso, feitiço de um mundo, tornada mais que ilhéu; uma ilha.
Segurando-a, que lhe foge, a memória torna-se cartão, livre transito.
Sobreviveu ao exílio!
Foi um pranto espezinhado e rude este seu ciclone, veio intempora1, libertando a memória, descer a gola do seu sobretudo de silêncio... comendo chanfana, como quem saboreia alcatra.
É-lhe duro este sofá da saudade, acariciando-lhe os dias que transforma em espera, com brandura, não vá destemperar-se a bonança deste mar que a navega, ocupando-a viva e marcando o tempo num relógio sem pêndulo.
Passo-vos hoje esta história de amor, história de caminhos de estrelas do mar e conchas de madre-pérola e a arca dos sonhos de Maria escondida no seio da ilha.
Ilha perdida?
Ilha que a perdeu?
São segredos que descobrirei.



FIM
Carlos Alberto Alves

Sobre o autor

Carlos Alberto Alves - Jornalista há mais de 50 anos com crónicas e reportagens na comunicação social desportiva e generalista. Redator do Portal Splish Splash e do site oficial da Confraria Cultural Brasil-Portugal. Colabora semanalmente no programa Rádio Face, da Rádio Ratel, dos Açores. Leia Mais sobre o autor...

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