Do livro Arquipélago do Sentir
CONTINUAÇÃO
A
ilha estava aqui e ali, vestiram-se as terras de hortênsias no instante de
acordar acenando. Caminhava por esta
altura a passos largos para a aprendizagem do seu mistério e a razão daquele
amor. Afinal não era assim tão frágil a
sua Terra dos Bravos.
Terra
dos Bravos, era ainda e sempre terra por descobrir.
Quantas
horas dos seus dias escrevendo palavras sem destino, só na descoberta do que
por dentro de um ilhéu era... ou do que estaria para além de todas as
palavras... talvez ainda do que todos os sentidos tornados palavras, tornavam
tão aquém o furor ou a calma dor, dorida, que se germina, no peito, no coração?
Não
importava aonde, desde que tudo fosse o sentir.
Sentir
era a sua perfeita combinação, entre o ser, o ser de dentro, sem pontos, nem
vírgulas ou outros artefactos, era o acto de respirar, libertando por todos os
poros, o saber da existência da palavra ilha, da palavra mar, ainda e sempre
das mais bonitas palavras.
A
questão estava em pegar nisto tudo e usá-las com naturalidade, puros e
intactos, muito embora magoasse.
Coisas
estranhas boiavam no lugar aberto das pausas, confraternizando com sua força
lenta, mas elaborada, do descobrir do seu amor extremo aquela ilha, tarefa que
no seu ser se entranhava em cada fibra.
Fibras, foram tempos fora, explicando-se, dando-lhe a segurança dos
tempos certos, compartimentando-os, definiu o que de si restara em destilações
de partida.
Mudou-se
o espaço. A não sei quantas milhas de
ondas e sal, ficam as terras de horizonte montanhoso de urgueiras e giestas,
coração da Beira-Alta.
Nascida,
Maria, entre brumas e vapores, criada com um tecto da terra caído no mar,
vai-se agora habituando a estar, embora, sempre que a vejo, prevaleça em mim a
certeza de a ver ficar exactamente, alga, gaivota, como nasceu. Recebeu-a a Beira com um fado serrano,
apertando-lhe na garganta a Charamba.
São
dias de Inverno durante nove meses, gela o “codo” nos caminhos e quando o ar
está da cor da abelha, vêm os nevões, cobrem-se as capuchas e acendem-se
fogueiras, logo ali na laje da cozinha, um lume a dar pelas barbas. É tempo de
matança.
Na
sua ilha tudo crescia entre o chão e terra, aqui a terra é pobre, a carne vai
para os salpicões e as castanhas vão para o caniço, comendo-se abaladinhas,
depois duma malga de caldo d'unto.
Que
sabe já, a minha amiga, do Pão por
Deus, das papas grossas, das ameixas vermelhas, perfumando cestos, que vinham
canal fora das ilhas de baixo.
Mas
sabe, sabe também de Dezembro e dos Natais, com presépios de musgo e lava e
tigelinhas de trigo p'ra germinar no dia de Santa Luzia, enfeitando o Menino do
Natal até aos Reis.
E
sabe dos bodos de leite, dos Impérios enfeitados, cheirando a massa sovada, a
alfenim, na procissão das oferendas.
Ai,
minha terra presa por um fio, diz, nem teus mistérios de fundo de mar me
escapam.
E
cada vez mais me convence que ser-se ilhéu é ser-se a mais por dentro outra
pessoa.
Que
um ilhéu tem olhos de negro-verde, mãos abertas como asas e um coração puro
como o das aves, ensaiando um hino de liberdade e vento a tempo inteiro.
São
milhas e milhas, mas nos seus olhos continuo a ver o seu doer de renovar,
morrendo de vontade de partir, do seu cais sem adeus, do seu naufrágio dormente
de fundo de olhos, do seu intextual vazio a preencher, numa gota de água que
tomba sempre.
Talharam-lhe
mares à volta, o terramoto das correntes e de palavras quietas, marcando
compasso, ao som de todas as vozes lentas, que a foram encharcando de solidão.
Esta
minha amiga, fez-se. quando as mãos frias do mar lhe selaram este pacto, que se
ficou hibernando, na mala que não fez viagem, de folhas que não apanharam
navio.
Escondida
nos seus sentidos de choro louco, aquela nódoa de alma sedenta, daquele sabor,
que não saboreou além do meio.
Ficou
então, com este porto-ponte de vagas atadas, florescendo ventos, assobiando nas
burras de milho, escorrendo-lhe dos olhos, navegando-lhe viagens, as suas
sementes, sedentas de serem árvore - alma - navio, pés de ilha, papejando...
papejando ... !
Nos
seus olhos continuo a ler a mensagem que me diz:
-”Quero
uma casa formando vapor, abrindo portas numa baía, de um lado o céu, do outro o
mar...”
Este
é o seu lado do avesso. O que dela se
tornou ilha, ou paisagem, irmã do tempo, em que letras de luto, vírgulas de
nostalgia, em pontos de cruz.
Continua
ainda hoje, a arrastar em quarto minguante o seu destino de ilha ilhéu num
continente perdida, repassando os dias, digerindo o tempo, fechando portas,
conciliando, por dentro e por fora, à espera que naveguem ainda barcos e
aviões... (nem que seja só na imaginação).
Em
curto-circuito, atravessa-lhe o peito, o espaço pousado, do seu tempo de quase
hóspede, na sua terra, falando-lhe de boca pequena, para não acordar a saudade.
Que
estranho tempo espalhado sem conserto, em ânsias de asas, abrindo-se no seu
caminho como serrados... é este o seu lugar, guardado no fim de todas as
fronteiras e tempos... um mar aberto... um grito de gajeiro...
Na
atmosfera aberta, eis mar, ventos e ilhas nas suas mãos, quais vidrilhos
rolados, licor amargo-doce, destilado em invenções de ser-se e ter-se, o tempo
de sentir e saciar-se à dor de dentro do amor machucado. Gastando o coração em procuras, guarda a poesia
no bolso e põe para florir e regar, toda a beleza que lhe deixaram os que em
equações de amor se mediram e guardam intacto e puro, o privilégio de nascerem
ilhéus.
A
ilha, um círculo de peixes... um ruído... um choro dentro de corais.
Uma
melodia lenta, com uma alegria morosa, não acordando demasiado cedo...
preparada para os que lutam e esperam sempre.
Mudos e excitados.
Assim,
foi criando o espaço-ilha, próprio de estar.. um mundo quente, que o mar acende
e as tradições mantém.
Uma
força fresca num passo de dança, num volteio de capa, num estouro de foguete...
numa camisa de linho, vaidosa de um nome a ponto de cruz.
Atou,
num adormecer trémulo, aquele lugar-casa de morarem a meias.
Morarem
a meias:
Tremem
as pálpebras da terra, tecendo abraços sem nome, tocando-a de luz,
desenhando-lhe os gestos, prolongando nela os seus sons e seus sustos.
Ilha,
dona solitária daquele seu tempo de raízes, amava-a, (ainda hoje), fazendo-lhe
poemas, como rendas novas, para a Coroa do Divino...
Enchia-lhe
o peito em dias de grito, como o orvalho... o coração nas mãos.
Montes
de coisas perdidas, em silêncios de papéis adormecidos. Terra cheia que a gerara, espalhando com
ternura todos os tempos povoados de coragem, cultivando-a com o linhais,
tornando maduros os seus pedaços, que o tempo de ilha os fez sedentos.
Estremeceu,
a minha amiga, empurrando esta porta da saudade, os braços mal cabiam
lembranças dentro, escapando-lhe por entre os dedos, cheiros pintados de
lembranças.
Impotência
muda, que na ilha dos Bravos nascida, foi aos poucos, direito e avesso, feitiço
de um mundo, tornada mais que ilhéu; uma ilha.
Segurando-a,
que lhe foge, a memória torna-se cartão, livre transito.
Sobreviveu
ao exílio!
Foi
um pranto espezinhado e rude este seu ciclone, veio intempora1, libertando a
memória, descer a gola do seu sobretudo de silêncio... comendo chanfana, como
quem saboreia alcatra.
É-lhe
duro este sofá da saudade, acariciando-lhe os dias que transforma em espera,
com brandura, não vá destemperar-se a bonança deste mar que a navega,
ocupando-a viva e marcando o tempo num relógio sem pêndulo.
Passo-vos hoje
esta história de amor, história de caminhos de estrelas do mar e conchas de
madre-pérola e a arca dos sonhos de Maria escondida no seio da ilha.
Ilha
perdida?
Ilha
que a perdeu?
São
segredos que descobrirei.
FIM
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