Na igreja dos meus poucos anos
Havia coisas que me pareciam estranhas, na igreja.
A pia da água benta. Tinha de me pôr em bicos de pés para molhar os dedos da mão direita e nunca via a água. Os grandes deviam vê-la, mas eu só sabia que estava ali água porque sentia as pontas dos dedos molhadas.
Além disso fazia-me confusão, meter os dedos numa água onde já tinham andado outros dedos, milhares deles. Sabia lá se limpos ou não… Se calhar o último benzido tinha tirado macacos do nariz…
Até que aprendi um truque. Pura e simplesmente fingia que já tinha chegado à água com os dedos, benzia-me rapidamente e estava resolvido.
Outra coisa estranha era o baptismo. Por que razão os bebés tinham de levar com água na tenra moleirinha para serem católicos apostólicos romanos? E nessa altura já não eram uns pinguinhos, era água a sério pela cachola abaixo.
Será que os bebés anunciam o feitio que vão ter quando forem homens e mulheres naquele momento em que são baptizados? Há os que nem soltam pio. Serão os resignados? Há os que gemem leve murmúrio, assim como quem não gostou mas também não acha que seja o fim do mundo. Serão os tolerantes? E há os que fazem uma chinfrineira dos diabos, como se os tivessem a matar ou como quem manda para outro lado o autor da façanha. Serão os revolucionários?
Outra coisa era a saca das oferendas. No meu tempo de criança era uma saca de veludo vermelho, presa a um pau, que ia sendo enfiada fila a fila por dois homens, sei lá se sacristões ou simples ajudantes. Meu pai dava-me sempre o privilégio de ser eu a meter a moeda na saca. Eu gostava de sentir o veludo nos dedos e de ouvir o barulho do meu metal juntando-se a outros metais que já estavam dentro da saca.
Depois substituíram a saca por uma bandeja, que passava de mão em mão, e a coisa perdeu a graça. Talvez tenha a igreja preferido este método para que quem contribui ver notas e ficar com vergonha de meter moedas, não sei… Mas sei que a visão de dinheiro vivo dentro do templo parecia-me mal. Era bem melhor quando bem tapado com o veludo da saca…
Também não gostava de missas cantadas. Pareciam-me pura perda de tempo. Afinal, era a mesma ladainha, só que cantada. Uma coisa é ressuscitou, dizendo seguido, outra bem diferente é re-ssus-ci-tou, cantarolando. Ai missas para demorar, as cantadas…
A confissão. Detestava a confissão. Sentia não ter pecados, mas tinha de me confessar para ser absolvido e poder comungar. Nada pior que receber a hóstia carregadinho de pecados. Ia-se logo para o inferno, sem passar pela casa da partida e sem receber dois contos…
Ainda se era para o fim da tarde, a coisa ia que não ia… Mas se era logo a seguir ao almoço e o bife tinha levado muito alho, tinha de suster a respiração para não morrer com o hálito de quem me daria a penitência. Isso é que era um pecado, sujeitar um puto àquele bafo pestilento. Ainda por cima um puto sem pecados…
Também não gostava de missas de corpo presente. E nem era pelo facto de ter um morto ali perto, as pessoas têm de morrer, soube-o bem cedo. Parecia-me era uma tautologia. Obviamente que se o corpo estava ali, estava presente. Não havia missas de corpo ausente. Nem de corpo passado ou futuro…
Mais tarde entendi. Quando fui a outras missas… Nestas o corpo já não estava presente. Só a alma, que não se via mas estava lá. Daí estas missas serem por alma de…
O Senhor Morto também me trazia imensa dor ao peito. Tanta que evitava o lado direito da igreja, só para não ter de me cruzar com ele. O Senhor Morto estava morto, como o nome indica. Dentro de um caixão de vidro. E a uma criança faz bastante confusão ver um Senhor Morto, deitado dentro de um caixão de vidro e o mesmo Senhor, mas vivo e em pé, noutros altares da mesma igreja.
O Senhor Morto ia passear uma vez por ano. Os vivos iam mais vezes, em diversas procissões. Não me parecia justo que o mesmo Senhor tivesse menos direitos, apenas porque morto…
Na Páscoa, os santos eram todos tapados, dentro da igreja. Mortos ou vivos, flanela preta para cima. Mas no domingo, aos cânticos de ressuscitou da multidão, eram destapados, as cortinas saíam das janelas e ficávamos todos com a sensação de que também nós tínhamos ressuscitado.
Aproveitemos a próxima Páscoa para ressuscitarmos mais uma vez. Bem precisamos…
António Bulcão
(publicada hoje, no Diário Insular)

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