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sábado, 25 de maio de 2019

Da Califórnia de Luciano Cardoso - ECCE HOMO


ECCE HOMO

A fé é uma força inabalável, capaz de mover montanhas, para quem a vive apaixonadamente. Quem não sente essa febre escaldar-lhe o fundo da alma interroga-se e incomoda-se mesmo com certos comportamentos chocantes a olho nu. Tudo porque há pessoas capazes do impensável para se aproximarem do Altíssimo.

Já lá vai meio século, era eu um franzino miúdo de treze anos e a imagem feriu-me a retina para sempre. Estava a estudar no Seminário, em Ponta Delgada, e maio ia a meio. Saíamos em grupo a passear pela cidade e tínhamos como paragem habitual o Campo de São Francisco. Era ali que eu me sentava num banco a saborear o meu gelado ante o fascínio que me prendia ao mistério do Santo Cristo. Ultimavam-se os preparativos para a grande festa e, às tantas, os meus olhos irrequietos fixaram-se numa mulher arrastando os joelhos ensanguentados pela calçada da velha praça até subir os degraus do Santuário. O marido amparava-a pelo braço e nos seus braços ela lhe caiu, ao pagarem a sua promessa. Os seus rostos lavados em lágrimas deixavam perceber uma dor imensa no carinho que os abraçava. Não sei se cumpriam mesmo uma promessa ou se ansiavam por algum milagre.

Todos os anos por esta altura, aquele acolhedor local adora tornar-se o coração vivo da formosa Ilha Verde. Engalanado, agiganta-se para receber muitos milhares de devotos açorianos, e não só, que ali ocorrem movidos pela fé no esplêndido “Ecce Homo” – essa terna imagem que inspira piedade e comove multidões com a sua história singular. Nada se lhe compara na mística bruma do panorama ilhéu. Castigadas por repetidas erupções vulcânicas, as sacrificadas gentes das nossas saudosas ilhas habituaram-se a erguer os olhos para o céu e a buscar no Infinito o consolo que a terra não lhes podia oferecer. Nem pode. É espiritual. E tanto o Senhor Santo Cristo como o Senhor Espírito Santo sabem bem das inúmeras preces que lhes chegam amiúde da superfície da Terra pedindo-lhes alívio para um sem fim de ardentes amarguras. Atentos às suas súplicas, lá tratam ambos de enviar os seus sinais que alimentam a fé do povo crente. 

Quem não crê, escusa perder o seu tempo argumentando contra este poderoso fenómeno religioso porque há já muitos séculos que ele habita a alma ilhoa e ali promete permanecer. A religiosidade popular açoriana tem sido objeto de estudos e reflexões que vão continuar a dar que pensar pelos tempos fora. Tentar limitá-la à mera explicação de que as firmes crenças da nossa boa gente se alicerçam numa fé quase cega, não pega. Trata-se duma conclusão curta e típica dos dias de hoje, onde o superficial cada vez ganha mais voz. Sobretudo na bulhenta barafunda dalguns meios de comunicação e redes sociais, o que menos faltam são habilidosos iluminados armados em peritos na matéria, tentando vender a sua banha de cobra como calha. E não se calam com o seu paleio ruidoso que lá leva os ouvidos a pedirem-nos melhor música. 

Agora, aonde quer que esteja, sempre que aos meus me chega a tocata do hino do Senhor Santo Cristo dos Milagres, confesso que sinto um enorme arrepio cá por dentro. Essa sacra melodia faz-me logo recuar a esse longínquo tempo da minha mimosa adolescência na linda Ponta Delgada, cuja beleza jamais se poderá separar do encanto com que cada maio a visita no velhinho campo de São Francisco. Recebe-nos como uma das praças mais amplas e antigas de toda a cidade. Parece que ainda estou a vê-la enfeitada com o seu coreto no centro rodeado por árvores centenárias circundando todo um passeio calcetado em basalto coberto por bonitos tapetes de flores prontos a receberem o desfile da maviosa imagem. Sai a norte, do seu Santuário da Esperança para passar, á direita, pela Igreja de São José e acenar, a sul, à vaidosa Avenida Marginal, mesmo em frente ao imponente forte de São Brás protegendo o simbólico Monumento ao Emigrante – três figuras humanas, com os seus três metros de altura, expressando o drama das famílias acabadas de embarcar para enfrentarem os múltiplos desafios da diáspora. Um simbolismo que todos nós, cá ao longe, compreendemos melhor do que ninguém.

Não será exagero dizer-se, portanto, que o lindo mês de maio transforma facilmente aquele hospitaleiro espaço no centro espiritual da cidade. Ali, no melhor que nos oferece a alma micaelense, começa e acaba a maior procissão religiosa dos Acores, hoje televisionada para os quatro cantos do mundo. Incorporei-me nela, durante mais de três horas, com apenas treze anos de idade. Meio século depois, a caminho dos sessenta e quatro, parece doerem-me ainda as solas dos pés. Prefiro nem imaginar, por conseguinte, as dores intensas nos joelhos de quem promete arrastá-los, e esfolá-los, demoradamente para pedir ao Santo Cristo um dos seus milagres. A fé, cega aos olhos mais descrentes, leva a estes extremos. Chamam-lhes excessos escusados. 

Chamem-lhes o que quiserem. E critiquem o que lhes apetecer, desde que respeitem o crer inabalável de quem angustiosamente procura alívio para as suas mágoas ou cura para os seus males. É a íntima relação do humano em busca do amparo divino. Sempre existiu e há de existir.

Carlos Alberto Alves

Sobre o autor

Carlos Alberto Alves - Jornalista há mais de 50 anos com crónicas e reportagens na comunicação social desportiva e generalista. Redator do Portal Splish Splash e do site oficial da Confraria Cultural Brasil-Portugal. Colabora semanalmente no programa Rádio Face, da Rádio Ratel, dos Açores. Leia Mais sobre o autor...

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