Partidos ou clubes?
O 25 de Abril trouxe para as ilhas palavras desconhecidas até então.
Por exemplo incoerência. “Estás a ser incoerente” era das piores coisas que se podia ouvir, numa discussão. Uma pessoa coerente era aquela que, se dizia uma coisa, tinha de repetir a mesma coisa ao longo dos meses. Mesmo que lesse, aprofundasse a matéria, mudasse de opinião, era um incoerente se dissesse em outubro coisa diferente do que dissera em maio. E era terrível ser incoerente…
Mas outras palavras tomaram de assalto o quotidiano dos açorianos. Reaccionário, por exemplo, era um indivíduo que se atrevia a ver alguma virtualidade no passado. Saudosista ainda ia que não ia. Mas os reaccionários tinham de carregar o rótulo como uma cruz.
Pior eram os fascistas. Se um reacionário tivesse a pouca sorte de dizer uma palavra errada, rapidamente subia para o patamar do fascista. Os aspirantes a fascistas eram “fascizóides” e os reincidentes passavam a “fachos”.
Uma pessoa da qual não se gostasse podia ser as três coisas ao mesmo tempo. No fundo, alguém que pensasse coisa diferente do adversário passava a ser um incoerente, reaccionário e um facho do caraças.
Outra coisa muito importante era determinar se uma pessoa era de esquerda ou de direita. Era usual a pergunta: “és de esquerda ou de direita?”. Escusado será dizer que ninguém dizia que era de direita. Era tudo de esquerda, mesmo aqueles que trocavam as mãos quando se pedia para levantarem uma delas.
Quando os partidos começaram a assentar praça, as pessoas aderiram aos mesmos como se de um clube de futebol se tratasse. “Eu SOU do PPD” soava da mesma maneira como “Eu SOU do Fayal Sport ou do Lusitânia”.
O pessoal queria lá saber se os partidos tinham programas políticos, quanto mais ler os mesmos… Interessava era SER deste ou daquele.
Por outras palavras, até ao 25 de Abril as únicas competições que havia nas ilhas eram as desportivas. Jogava-se futebol, basquetebol, hóquei em patins, nas sociedades sueca, bilro e dominó. Um gajo que não tivesse jeito para a coisa era um nabo ou um piço.
Quando a política passou a ser também um jogo e uma competição, a linguagem mudou, mas o espírito clubístico manteve-se. Caravanas automóveis de campanha davam voltas à ilha, soltando pelas janelas dos carros bandeiras com setas ou punhos, que bem podiam ser bolas ou raquetas. E festejavam-se vitórias como se as mesmas tivessem sido para o campeonato distrital.
Pouco tempo passou até que este espírito competitivo passasse para o interior dos partidos. O cidadão normal não imagina os dramas que se desenrolam no interior dos partidos políticos, sobretudo quando em alturas de se definirem as listas de candidatos. Mas posso afiançar-vos: os melhores camaradas tratam-se como adversários, muitas vezes como inimigos. Esquecem-se de que “remam todos para o mesmo lado” e de que o verdadeiro adversário é outro partido. O que interessa é se o nome de alguns aparece ou não em “lugar elegível”. No fundo, interessa sobretudo quem vai a jogo e quem fica no banco.
Dirão alguns que tudo isto é reflexo do facto de o povo português não estar preparado para a democracia, em 1974. E eu estou de acordo. Era impossível estar, depois de 48 anos de ditadura e de obscurantismo. Não havia campanha de dinamização do MFA ou disciplina metida à pressa nos curricula escolares que suprisse meio século de obediência cega sem discussão e muito respeitinho.
Mas passados 45 anos de regime democrático, era de esperar que tivéssemos aprendido alguma coisa. Porém, assim não acontece. A divisão entre partidos de direita e de esquerda em Portugal prova-o. São inimigos. Atacam-se como tal. Mesmo que um partido dito de esquerda prossiga políticas de direita e vice-versa.
E, no meio, ficamos sempre nós, os desgraçados. Quer sejamos professores, bombeiros, enfermeiros ou polícias, jogam com as nossas vidas, roubam-nos rendimentos e tempo de serviço, usam-nos a seu belo prazer segundo os seus interesses político-eleitoralistas.
Esquecem-se de valores fundamentais, como a Justiça. Do que é ou não justo. O que importa realmente é se vão ou não ganhar as próximas eleições, se vão ou não conseguir maioria absoluta.
E ainda vem Augusto Santos Silva proclamar do alto dos seus cabelinhos nucais que “não se pode apagar a História”. É verdade que não se pode apagar. Mas também é verdade que a História julgará os vendilhões do templo. Os de esquerda e os de direita…
António Bulcão
(publicada hoje no Diário Insular)
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