De Viagem, de Marta Dutra, ou a efemeridade da existência humana
Os poetas têm razões que a razão desconhece. Profanadores de todos os saberes, eles sabem que as palavras se corrompem no comércio quotidiano das gentes. Por isso recuperam, devolvem, transfiguram e subvertem essas palavras. Porque sabem que a poesia não explica, implica; o poema não afirma, sugere. O significado da imagem poética remete-nos sempre para um esfíngico segredo e para uma forte ambiguidade. Nesta perspetiva, a poesia será também uma tentativa de compreender o incompreensível.
Ao leitor é lançado um desafio: o de descortinar o lado de lá da neblina do verso. Isto é, ele terá ser capaz de decifrar e descodificar o(s) sentido(s) do poema, para que assim aconteça a fruição do texto (“le plaisir du texte”, de que falava Roland Barthes).
Ao poeta cumpre o ofício de lapidar a palavra exata e essencial e nela encontrar os ritmos e as pulsações, os silêncios e as sonoridades. Sendo um (incansável) trabalhador da palavra, ele não deixará nunca de observar o real e dissecar a sua vida (a sua alma) – como Vernet agarrado ao mastro do navio para estudar a tempestade…
Vem isto a propósito da última obra de Marta Dutra, intitulada de Viagem (DebatEvolution, 2012), com apetecível Prefácio do escritor João de Melo, que sucede ao livro com que se estreou poeticamente: Vago – o Olhar (Junta de Freguesia de Fânzeres, 2008), vencedor do Prémio Nacional de Poesia de Fânzeres e merecedor dos melhores encómios do júri que o selecionou.
Publicar é propor à interpretação e a autora é a primeira a fazer tal proposta aos seus leitores ao decidir-se editar. Há, em Marta Dutra, uma vontade de se dar a ler, ela que elege a escrita como uma terapia.
E quem é Marta Dutra? Digamos que é a contagiante simpatia de uma faialense dedicada e delicada, a sensibilidade elegante de uma açoriana de corpo inteiro, e o irresistível encanto de uma portuguesa do mundo. Mas a Marta é muito mais do que isso – é a afirmação de um amadurecimento intelectual e de uma maturidade poética, pois que a poesia é o seu lado silencioso e o seu percurso secreto. Por detrás da serena ambiguidade do seu sorriso, esconder-se-á um espírito intrigado e inquieto, uma alma torturada e complexa? Mas a psicologia não é para aqui chamada e passemos à frente.
Este livro de Marta Dutra deixa, desde logo, este aviso à navegação: a vida é “como uma viagem em que se vive, se morre e se renasce em cada dia”. Ora, Marta Dutra condensa, nestes poemas, o destino da vida humana no teatro do mundo. Porque é disto que nos fala a grande Poesia e a grande Literatura: a vida e a morte, o amor e o sonho, o afeto e a solidão, a distância e a ausência, a saudade e a usura do tempo…
Tal como no seu livro de estreia, também neste a autora continua a questionar, em versos muito belos e envolventes, o enigma, o mistério e as contradições da condição humana.
A viagem será sempre uma forma de perseguir caminhos de felicidade e sonho. Nós, açorianos, andamos sempre de viagem, ou não fossemos “um povo embarcadiço”, como escreveu Vitorino Nemésio, no seu livro Corsário das Ilhas. E embarcadiços somos, praticamente desde que os Açores foram povoados. As separações e as ausências fazem parte do nosso imaginário de povo insular. A errância sempre foi a nossa sina. Na emigração descobrimos a nossa identidade mais profunda. Somos um povo de muitas partidas e poucos regressos. Partimos, mas carregamos a ilha dentro de nós. E a propósito, nunca como agora me pareceu tão verdadeira a (emblemática) frase do escritor Daniel de Sá: “Sair da ilha é a pior maneira de ficar nela”.
Recorrendo à viagem das barcas vicentinas, dir-se-á que passamos a vida a utilizar a barca não enquanto transporte usado na forçosa travessia do rio Coronte (que, na mitologia grega, separa o mundo real do mundo dos mortos), mas aquela embarcação em que tanto se empreende a viagem da morte, como a da vida, pois tudo é humanamente uma só rota e aventura.
Num frustrado esforço de se (re)encontrar, Marta Dutra (digo, o eu do poema, ou o sujeito poético, como querem os académicos) trava um intenso diálogo consigo própria (isto é, com o seu eu angustiado, seus sonhos e medos, segredos e silêncios, perplexidades e deslumbramentos), na sua relação (conflituosa) com a vida, com o mundo e com os outros. A passagem dos anos deixa marcas indeléveis, havendo, em consequência disso, o latente desejo da autora em partir em busca de um tempo irremediavelmente perdido: o regresso ao paraíso dos verdes anos, ou seja, à infância insular. Até porque as recordações dos verdes anos se avivam à medida que vamos ficando mais vividos e menos jovens. A nossa existência é uma perpétua dialética: saudades do futuro e saudades do passado:
“desliga a máquina do tempo.” (pág. 22)
A “nostalgia das ilhas” (pág. 19) habita a poeta que, com elas, mantém uma relação fascinada: “tinha de voltar” (pág. 7)
Com efeito, a ilha perdida e mitificada viaja no íntimo de Marta Dutra. Desejando alcançar o absoluto e a plenitude, a autora identifica-se com a ilha e nela busca a harmonia e a unidade original. E há aqui uma visão panteísta da natureza, uma união com a vida cósmica em moldes muito próximos do epicurismo. A ilha sensualiza já que, sendo terra-mãe, está ligada à aprendizagem da vida e é como se fosse a mulher primordial e genesíaca, portadora da vida, do desejo e da morte, funcionando como símbolo da fecundidade e da fertilidade.
Daí que a poesia desta faialense residente em Aveiro emane uma profunda ternura, já que a ilha (sempre pressentida) é território de magia, beleza, sedução e mistério. E, associada a ela, temos o mar como símbolo de um regresso às águas amnióticas do materno ventre. De resto, e como tenho escrito vezes sem conta, o mar não é uma prisão, é uma libertação. E, para a autora, a libertação só poderá ser encontrada no mar:
“só a imensidão deste mar me permitirá viver livre.” (pág. 9)
Os poemas deste livro são atravessados por um sopro de solidão: a solidão dos poetas. Daí uma tensão que se gera no interior desta poesia. Que tem um sentido do abismo. A perceção da vertigem que vem do abismo. O desespero da dificuldade de ser.
A contas com a “solidão maior” (pág. 23), o sujeito poético, que diz estar “só nesta imensidão de nadas” (pág. 10), sabe também que só o amor omnia vincit. Buscando o inatingível e aspirando ao impossível estado de alma, o eu do poema idealiza o amor como um sentimento absoluto. Busca o amor, porque o amor adia e suspende a morte, e porque o amor não é um sentimento perdido – é o grande valor da nossa vida e é, em última análise, o grande valor da Literatura:
“e eu: aceito-te no meu abraço. em mim. (…) talvez te confesse que não quero fazer esta viagem sozinha. E que o caminho é uma partilha” (pág.49).
É efémera a existência humana, sabemo-lo bem. Por isso este livro fala essencialmente do apelo dessa viagem que nos levará inevitavelmente à morte, conforme poderemos ler nesse belíssimo e pungente poema que assim começa: “mas eu vou morrer”. (pág. 7)
De resto, a pulsão da morte atravessa, de forma quase obsessiva, os versos deste livro. A morte surge-nos como um conhecimento de perda, à maneira do filósofo alemão Martin Heidegger: o destino da nossa existência – isto é, do indivíduo humano – é o regresso ao nada. Segundo aquele autor, o homem é um “ser para a morte”. Mas é a tensão emocional, a preocupação aqui latente que faz com que a existência ganhe sentido. A consciência da nossa finitude concorre para que a nossa existência se empenhe na sua autenticidade.
Num poema do seu livro “O Verbo e a Morte”, Vitorino Nemésio, que conjuga uma difusa reflexão filosófica com uma segura expressão poética, influenciado por Heidegger, diz que “a morte é a foz das vidas”, de modo que o finito se torna completo como um rio o é em si mesmo na sua infinidade. Marta Dutra não precisou de ler Heidegger para escrever o poema da pág. 44, que assim começa: “a celebração da vida/ é a celebração da morte / necessariamente (…).”
Relacionando e fazendo contraponto entre vida/morte, finitude/eternidade, de Viagem é, por conseguinte, uma viva inquietação de raiz existencial, é um jogo de máscaras e espelhos que são viagens interiores por dentro de muitas e múltiplas inquietações. É, na sua essência, uma viagem íntima, que aqui deverá ser entendida como revelação e como forma de procura e de (re)descoberta – a viagem que invoca e convoca sensações e sentimentos que ficaram enraizados na memória da autora.
Gosto incondicionalmente da luminosa e rigorosa limpidez dos versos de Marta. Aprecio a essência e transparência dos mesmos. Eis uma poética que traz um frémito novo à nossa poesia. Uma poesia espontânea e emotiva, iluminada e fascinante, de boa ressonância musical e de apreciável frescura lírica e melancólica. Acima de tudo, poesia depurada, sendo que essa depuração passa por uma negação do acessório, do ornamento, da retórica, da bela frase.
Deixo-vos com este de Viagem que é um belo livro para quem o souber ler.

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