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domingo, 19 de maio de 2019

Rolando pelo facebook - Pierre Sousa Lima


Quando a coca era vendida em copos de imperial a 500 escudos

Em 2001, meia tonelada de droga deu à costa em São Miguel, mudando para sempre a vida da ilha, que até aí não conhecia cocaína. Dezoito anos depois, o trauma permanece. O caso continua a ter projeção internacional.

Nem um agente da PSP com um currículo limpo resistiu à tentação. Ali perto da esquadra de Capelas, nas ruelas de Rabo de Peixe ou da Ribeira Grande, muita gente enriquecia ao ritmo da cocaína que ia sendo encontrada por toda a costa de São Miguel, nos Açores. Em poucos dias, alguma desta droga chegou-lhe às mãos. Em vez de a entregar aos colegas, o agente vendeu o produto na rua, a baixo preço, como fazia a concorrência no final da primavera de 2001. Aqueles não eram dias normais em São Miguel onde até os polícias bons se transformavam em traficantes. Mas o negócio acabou da pior maneira para o agente. Foi apanhado pela Polícia Judiciária, preso, condenado e depois expulso da PSP.

Vai fazer agora 18 anos que o veleiro “Sun Kiss 47” teve um contratempo junto a São Miguel: uma ventania destruiu o mastro e Antonino Quinci, único elemento identificado na tripulação, decidiu esconder numa gruta meia tonelada de cocaína que trazia do Golfo de Caríaco, a norte da Venezuela. O italiano tinha esperança de recuperar a droga assim que o sobrinho Viti viesse arranjar a embarcação que ficou atracada no porto de pesca de Rabo de Peixe. Depois seguiria até às ilhas Baleares, onde o produto seria escoado pela máfia. Só que os planos saíram-lhe furados. A força das correntes atlânticas espalhou as embalagens — algumas delas estavam até presas a âncoras e correntes de ferro — que foram parar a várias praias da ilha. O caos instalou-se.

De um dia para o outro, aquele produto semelhante a farinha começou a ser snifado por gente que nunca tinha sequer fumado um charro e a ser vendido por pessoas que nunca antes tinham traficado: havia cocaína em copos de imperiais por 500 escudos (2,5 euros).

Esta droga em saldos tinha uma agravante: era comercializada em estado quase puro porque não tinha sido ainda ‘cortada’, ou seja misturada com outros fármacos para a tornar menos potente, como habitualmente fazem os traficantes.

As autoridades começaram a perceber que algo corria “terrivelmente mal” quando as urgências hospitalares se “entupiram” com casos diários de overdoses, algumas mortais. Embora não haja números oficiais, fala-se em quase 20 mortes em poucos dias. Os médicos nunca tinham visto nada semelhante, até porque a cocaína era residual nos Açores. “De repente apareceu uma avalancha de jovens com alucinações, problemas cardíacos... As camas dos hospitais encheram-se de doentes. Ninguém estava preparado para aquele cenário”, lembra uma médica que acompanhou o fenómeno.

Alberto Peixoto, sociólogo que naquele tempo trabalhava na PSP e que integrou a equipa do primeiro plano de prevenção para as dependências nos Açores, salienta: “A droga barata atraiu um estrato social muito baixo da população que não sabia o que era a cocaína.”

COCA ENTERRADA NOS QUINTAIS

Entretanto, a PJ lutava contra o tempo: tinha de apanhar os donos da droga e de resgatar os fardos ao longo da costa. A 7 de junho, apreenderam 300 quilos no Pilar da Bretanha, um dos pontos mais a norte. Uma semana depois acharam mais 150 quilos e no dia 22 fizeram buscas ao “Sun Kiss 47”. “Estava lá Antonino, que dizia chamar-se Giovani Esperanza e guardava várias identidades falsas. Dentro do iate havia um pacote igual aos que estavam espalhados em São Miguel. Decidiu colaborar, pelo menos nos primeiros momentos”, revela um inspetor da Judiciária.

O italiano ficou em preventiva na cadeia de Ponta Delgada por pouco tempo. Conseguiu escapar com facilidade uma vez que os muros da prisão eram muito baixos na altura. Lá fora esperava-o um cúmplice português que conhecera na cadeia e fugiram numa Vespa. A recaptura demorou alguns dias. Antonino foi apanhado, “por acaso”, num palheiro de um traficante local. “Estranhamente estava com sinais de consumo elevado de cocaína. Não parecia andar em fuga”, conta outra fonte ligada a esta operação. O italiano foi condenado a 11 anos de prisão e hoje ninguém sabe do seu paradeiro.

Não existem certezas sobre quanta droga transportava o veleiro mas a PJ não tem dúvidas que seriam perto de 500 quilos. Muita dela nunca chegou às mãos das autoridades. Há quem garanta que havia tanta cocaína em São Miguel que se contam episódios de mulheres a panar peixe com coca, julgando que era farinha, ou que ainda hoje há pacotes enterrados em quintais na ilha. O caso gerou tantos mitos como ‘agarrados’. Quando o valor da cocaína voltou ao normal muitos passaram para a heroína, mais barata mas também mais letal. O fenómeno deixou sequelas. Nas consultas de apoio a toxicodependentes, os mais velhos, os sobreviventes, não esquecem aqueles tempos loucos, “os do boom do veleiro”, como lembra uma médica micaelense.

A história correu o mundo. E ainda hoje continua a ter projeção internacional. Há poucos dias, o “The Guardian” ressuscitou o caso numa grande reportagem e duas jornalistas espanholas preparam-se para lançar um documentário sobre como a cocaína afetou a empobrecida população de Rabo de Peixe. “Foi um caso singular, ampliado por se ter passado numa ilha, em ambiente fechado”, salienta Alberto Peixoto.

(Hugo Franco - semanário Expresso de 18/05/2019)

Carlos Alberto Alves

Sobre o autor

Carlos Alberto Alves - Jornalista há mais de 50 anos com crónicas e reportagens na comunicação social desportiva e generalista. Redator do Portal Splish Splash e do site oficial da Confraria Cultural Brasil-Portugal. Colabora semanalmente no programa Rádio Face, da Rádio Ratel, dos Açores. Leia Mais sobre o autor...

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