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quinta-feira, 27 de junho de 2019

Do jornalista Souto Gonçalves - 5 - DEI COMIGO A PENSAR...


5 - DEI COMIGO A PENSAR...

... no cheiro do saguão de nossa casa

No artigo da passada semana falei da Praça da República, da vivência que ali se gerava e do ambiente que a circundava, há quase meio século.

Na minha infância quando alguém se referia a alguma coisa que tivesse acontecido «há 50 anos» para mim era como falar de um tempo tão distante que até parecia irreal. Agora, fazendo um flashback, a memória -- no que ela é capaz de me ajudar -- mostra-me que o tempo tem uma incrível elasticidade e por isso percebo que um ou dois bons pares de décadas, afinal, não passam de um súbito momento.

O tempo, primeiro, é lento e compassado, por vezes fastidioso, mas num instante se torna fugidio, tanto que nos troca as voltas e não conseguimos agarrá-lo como queríamos. E nessa ânsia, não sei porquê nem porque não, as coisas antigas parecem estar tão perto...

Mas basta de filosofias. A verdade é que há 50 anos a minha vida era passada na Praça da República, na Rua Serpa Pinto e por ali...

Comecei esta série de artigos a dizer que vinha falar de política. Porque gosto. E também disse que iria tentar aligeirar o texto com uma faceta pitoresca, para atrair atenções, já que a política afasta as pessoas. E como qualquer escriba almeja ser lido usarei esse subterfúgio. Para já, estou satisfeito: houve uma pessoa que confessou ao diretor do jornal que gosta muito do que escrevo.

De qualquer maneira, porque o «escritor» deve ser fiel aos seus leitores, tenho que alertá-los para um pequeno desvio das minhas iniciais intenções. Esse tal lado pitoresco tem-me levado a boas recordações e ao quinto artigo dou comigo a contá-las e a sentir um prazer especial nisso. Esses episódios começaram a renascer na minha cabeça e revivê-los é gratificante.

Quanto à política, mantenho a intenção de me pronunciar sobre o que vai acontecendo na nossa cidade -- aqui no sentido mais próximo da etimologia da palavra. Porque é preciso, digo eu, promover mudanças.

Em suma, o objetivo com que me lancei nesta empreitada não está abandonado, embora esteja condicionado pela «pena» que vai correndo, já não nas linhas de um caderno, mas sobre o teclado de um computador. Hei-de ir dando uma no cravo e outra na ferradura, seguindo o impulso das minhas lembranças e o apelo à intervenção do cidadão que sou.

Nunca tinha atravessado sozinho a Praça da República! Com um sentido educativo de que hoje sou beneficiário, meu pai muito cedo me atribuiu tarefas, simples, mas que exigiam responsabilidade.

Antes dos meus nove ou dez anos de idade, pouco depois das sete horas, eu saía da casa de meu avô, na Rua de São João, na esquina das Escadinhas, onde morámos nos primeiros anos da minha vida, com um pequeno cabaz de vimes. Levava o pequeno-almoço ao talho onde meu pai já se encontrava, em frente ao mercado, desde as cinco horas. A princípio receoso, mas depois entusiasmado com o movimento das primeiras horas da manhã. Sobretudo por começar a perceber que a Praça da República era o lugar ideal para brincar!

Há mais ou menos 30 anos -- parecendo que isto foi outro dia, eis um exemplo da incrível elasticidade do tempo de que falei ao princípio -- deixei de morar na Rua Serpa Pinto. Ainda anteontem passei pela Praça da República, por fora do mercado e em frente à minha casa. Todas as vezes que lá volto não sei se me entristeça, se recorde com alegria, se passe à frente para não pensar muito. Esta dúvida permanece quando noto que à janela do número 41, ainda que esteja aberta, sorridente e generosa, minha mãe já não aparece.

A Rua Serpa Pinto, o mercado e a Praça da República, apesar de tudo, ainda me dão aquele aconchego do regresso a casa.

O coração da cidade -- era ali que ele batia --, a cada pulsação gerava a vida de uma Horta que foi vencida pela voracidade das épocas modernas, que muito trouxeram, certamente, mas pouco deixaram.

A Rua Serpa Pinto exalava um ar «multiodor» (a palavra não existe, mas como há multicolor permito-me empregá-la)... ainda o olfacto mo recorda.

Às vezes, ao fim da tarde, antes de fechar a sua mercearia e de subir até casa para fazer o jantar, minha mãe mandava-me comprar queijo de São Jorge. Antes de descer o degrau e de fazer ranger o sobrado, de cumprimentar o Senhor João Porto e de vê-lo, enérgico, pequeno, de voz estridente e desfeito em delicadezas, já me cheirava aquele delicioso café que ele moía, embrulhava e emedava sobre o balcão.

Dois passos mais adiante, ainda «apanhei» o Senhor Cabral, tão pequeno como o Senhor João Porto, com quem ombreava em cortesia, contudo sem qualquer espalhafato. A mercearia, de tons esverdeados, já tinha os frascos a meio ou vazios e talvez servia-lhe mais para distração do que para lucro.

Nada, porém, se assemelhava à paradisíaca mistura do cheiro a ameixa, maçã, pera, pêssego, figo, uva, amora, que percorria a Rua Serpa Pinto logo depois da lancha da fruta chegar do Pico. Se o tempo voltasse para trás esta seria uma das maiores atrações turísticas da nossa cidade.

Todas as lojas que tinham balança também tinham à porta, a partir da primavera, um largo cesto de vimes escuro, dentro do qual, cuidadosamente arrumadas sobre uma toalha e adornadas com folhas, as peças de fruta aguardavam que um homem ou uma mulher do Pico conseguisse que fossem levadas até à mesa de numerosas famílias faialenses.

Na nossa cozinha, principalmente quando o verão começava a caminhar para o fim, nunca faltava uma travessa de uva bem preta, porque meu pai a devorava, meticulosamente. Não comia o bagulho, que lhe dançava na boca até ser separado e rejeitado.

À simpatia de minha mãe e a uma balança de dois pratos «Avery» ficámos a dever a oferta, durante anos seguidos, de uva para o almoço. E nesse tempo também se fizeram e firmaram amizades. Recordo, com saudade, a do Senhor Augusto Caixeiro.

Quando foi imposta a recolha dos vendedores de fruta ao interior do Mercado Municipal continuámos com a mesa recheada.

A disputa por uma posição favorável dentro da praça não era para meninos! Vai se não quando e o nosso saguão transformou-se num ponto estratégico avançado na guerra por um lugar ao sol à sombra das árvores no meio do mercado.

Alguns vendedores traziam os cestos na tarde do dia anterior, amontoavam-nos até às escadas e, de manhã, atravessando o caminho, antes da lancha da fruta, com o mercado ainda de portas fechadas, plantavam-se do lado de fora prontos para ocupar posições.

Meu pai, que não foi beneficiado pelo dom da bondade que minha mãe irradiou ao longo de toda a sua vida, franzia o sobrolho sempre que tinha que encontrar espaço no meio de tanta fruta para entrar em casa. Uma coisa era certa: podiam vir todos os cestos do Pico na véspera, mas com a Maria Souto nenhum ficava na rua! E o nosso saguão era o que cheirava melhor.

Souto Gonçalves
Publicado também no jornal Incentivo, na sexta-feira, 8 de março de 2019
Carlos Alberto Alves

Sobre o autor

Carlos Alberto Alves - Jornalista há mais de 50 anos com crónicas e reportagens na comunicação social desportiva e generalista. Redator do Portal Splish Splash e do site oficial da Confraria Cultural Brasil-Portugal. Colabora semanalmente no programa Rádio Face, da Rádio Ratel, dos Açores. Leia Mais sobre o autor...

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