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485º Aniversário da Cidade de Angra do Heroísmo

sábado, 1 de junho de 2019

Do poeta, escritor, jornalista Luís Fernando Veríssimo


Me desculpe

Como psicanalista, o dr. Abreu já tratara de muita gente estranha. Um paciente tentara esgoelá-lo e saíra do consultório diretamente para o manicômio. Outro contara em detalhes toda a sua vida, que o dr. Abreu não demorara em identificar como sendo a vida do Thomas Edison. Por isto o dr. Abreu não se surpreendeu quando a primeira coisa que aquela nova paciente disse foi:
– Eu posso não estar aqui.
O dr. Abreu pediu, sorrindo, para ela explicar. Ela disse:
– Eu nunca sei se estou sonhando ou não estou. É por isto que eu estou aqui.
– Então você está aqui – disse o dr. Abreu.
– Se eu não estiver sonhando. Eu posso estar na minha cama, dormindo, e sonhando que estou aqui.
– O que não a impede de falar, e me contar os seus problemas.
– Meu problema é um só. Não consigo distinguir sonho de realidade.
– Muito bem. Vamos supor que isto seja um sonho. Que eu também não esteja aqui, e sim no seu sonho. Podemos fazer a sessão assim mesmo. Com a vantagem que você não precisará pagá-la, já que é tudo um sonho.
– O senhor acha?
– Acho. Deite-se, por favor.
– Aqui, no divã?
– Por favor.
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O dr. Abreu pediu para ela contar desde quando confundia sonho com realidade. Ela respondeu que desde criança. Ela se lembrava de algum trauma de infância que pudesse ter desencadeado a confusão? Não, não. Na verdade sua infância tinha sido um sonho. Ou então ela sonhara que tinha sido um sonho. Era difícil dizer.
– Você nunca fez um teste para saber se era sonho ou não?
– Como, teste?
– Por exemplo, tentar fazer uma coisa completamente impossível. Voar. Sair voando pela janela. Se você conseguir voar, é sonho. Se não, não é.
– Me belisque.
– Como?
– É um teste. Me belisque. Se eu sentir, não é sonho.
– Desculpe, mas eu não posso beliscá-la. Não posso tocá-la. Seria antiético.
– Só se não fosse sonho. Se fosse, não teria importância. Sonho não tem ética, não tem moral, não tem regras, não tem lógica. Num sonho nada é impossível, nada é proibido. Me belisque.
– Não posso.
– Você não quer me ajudar? Seria um beliscão terapêutico. Para acabar com as minhas dúvidas.
– Desculpe.
– Você prefere que eu tente sair voando pela janela. É isso?
– Não, eu….
– A verdade é que você não tem certeza se isto é um sonho ou não. É ou não é?
– Claro que não. Eu tenho certeza que isto é a realidade.
– Então me belisque, para provar.
– Não.
– Me belisque!
– Não posso.
– Me belisque!
Naquele momento, o dr. Abreu pensou no seu velho sonho de largar a profissão se retirar para um sítio, longe da voz humana.

Carlos Alberto Alves

Sobre o autor

Carlos Alberto Alves - Jornalista há mais de 50 anos com crónicas e reportagens na comunicação social desportiva e generalista. Redator do Portal Splish Splash e do site oficial da Confraria Cultural Brasil-Portugal. Colabora semanalmente no programa Rádio Face, da Rádio Ratel, dos Açores. Leia Mais sobre o autor...

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